Milton Nascimento em viagem com o filho, Augusto Nascimento, à Espanha
Reprodução/Instagram 14.08.2022
Milton Nascimento em viagem com o filho, Augusto Nascimento, à Espanha

Ao cruzar a porta de entrada da casa de Milton Nascimento, no Rio, avista-se logo uma grande foto em preto e branco do músico abraçado ao filho, Augusto. Só depois, discos de ouro são enfileirados na mesma parede, e outras referências à carreira, como quadros e instrumentos, se espalham pelos demais cômodos. A paternidade é algo a ser reverenciado ali. “Não tinha alguém em quem pudesse viver plenamente e que gostasse de mim apesar de tudo. Deus me deu o presente”, diz o cantor, completa 80 anos em outubro, ao sublinhar o quanto a convivência com o filho que se transformou como ser humano.

Augusto nasceu em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, e mudou-se com a mãe para Juiz de Fora ainda criança. Milton, por sua vez, sempre teve amigos por lá e costumava cruzar com frequência as três horas de estrada que separam o Rio da Mineira para visitar a cidade. Numa temporadas, amizades em comum conectando os dois. “Ele ia até lá para descansar, e acabávamos nos encontrando”, recorda-se Augusto, de 29 anos. “Eu não tinha ligação com o meu pai biológico, e ele era muito sozinho. Fomos nos entendendo nessa relação, até percebermos que havíamos nos tornado pai e filho. Foi uma construção ao longo do tempo.”

O rapaz lembra, entre 2014 e 2016, Milton sofreu uma depressão profunda e, quando podia, ele viajaria até o Rio para visitar o cantor. “Mas a minha vida estava toda em Juiz de Fora, onde cursava Direito. Então, ele começou a ir muito para lá”, narra Augusto, que morava num quarto e sala próximo à faculdade. “Não tinha estrutura alguma, né? Era um, e ele diabético, na época com a saúde muito ruim, comendo Miojo comigo”, continua, sob os olhares atentos do pai. Bituca solta, então, uma risadinha e completa: “Era um entra e sai de estudante, e eu no meio”. 

Nesse período, Mil se recorda de uma madrugada dramática, em que experimentou também uma preocupação de pai. Foi quando Augusto, depois de visitá-lo no Rio, pegou a estrada de volta sozinho, em meio a uma tempestade. “Fiquei desesperado até falar com ele, na manhã seguinte, por telefone. Foi danado.”

As idas e vindas apenas cessaram quando o pai contornou ao filho que o teto de seu apartamento, na Lagoa, corria o risco de desabar, devido a uma infestação de cupins. Augusto teve, então, uma ideia de propor que morassem juntos, e o convite foi aceito em julho. “Fui buscá-lo no dia seguinte e, até morarmos a documentação da casa que encontramos para morar, ele ficou no apartamento. Saboreou todas as versões de Miojo.” 

Àquela altura, Milton já havia perguntado a Augusto se aceitava ser filho dele. A resposta foi sim, mas eles precisaram enfrentar um longo processo judicial até que a paternidade fosse oficializada, em 2017, quando o rapaz passou a usar o sobrenome Kesrouani (da mãe) Nascimento. “Depois disso, ele sempre pedia os meus documentos para mostrar aos amigos”, recorda-se o filho. Uma cópia da certidão de nascimento emoldurada virou lembrança de Dia dos Pais, já que Bituca gosta de presentes “bem clichês”, segundo Augusto. “Ele adora aquelas camisetas com frases como 'melhor pai do mundo'. E aí fica uns dois meses usando a mesma roupa.” Milton explica o motivo da euforia: “Sempre gostei muito de criança, tive não sei quantos casamentos, mas não consegui ter uma em casa de jeito nenhum. Quando ele apareceu, veio a criança para mim.”

O cantor fala, com orgulho, sobre também as coincidências que selaram a relação entre os dois. Uma delas é a semelhança entre o avô biológico de August e seu próprio pai, que era feito a curiosidade. “Quando o conheci, disse: 'Meu Deus, outro Professor Pardal!'. Eles têm várias características em comum”, comenta Milton, que tem uma ótima relação com os familiares do filho, com quem divide as noites de Natal, em Campo Grande, onde moram. Ele próprio também foi adotado, quando tinha 2 anos por Lília e Joino, após a morte de sua mãe biológica, Maria. Estar agora do outro lado dessa relação, afirma, representa “uma coisa só”. “Estamos dando e recebendo. Isso é o importante para mim.”

Outro ponto de conexão entre pai e filho vem da umbanda. Milton tem Oxalá como orixá e descobriu que Augusto é de Oxóssi. “E Oxóssi toma conta de Oxalá. Não acredito em coincidência. É porque tem que ser”, diz o cantor, adepto da religião católica, da umbanda e do budismo, este por interferência do saxofonista americano Wayne Shorter, com quem gravou o cultuado álbum “Native dancer”, lançado em 1974.

Milton Nascimento e o filho, Augusto Nascimento
Reprodução/Instagram 14.08.2022
Milton Nascimento e o filho, Augusto Nascimento

Com muita vida profissional, Augusto virou empresário do pai, “Havia muita gente em volta e, infelizmente, muito abuso”, afirma, mencionando que, só de afilhados, Milton tem 180. “Blindei o entorno, porque era um caos. Ele foi para Juiz de Fora (no período em que estava em depressão) sem nenhuma perspectiva de voltar a fazer shows. Quando começou a reparar e finalmente fez a primeira apresentação, saiu abraçado comigo e pediu para agendar mais. Houve, porém, um longo caminho, com hospitais e internações antes disso. Ninguém sabe o que pedir. Quando ele estava doente, 90% dos que viviam à sua volta desaparecem. Ao anunciarmos a última turnê, umas 20 pessoas que estavam 'mortas' reapareceram.” 

Além da vida profissional, Milton precisou passar a limpo a maneira como lidar com a saúde. No auge da pandemia, foi contratado o filho a abrir mão das tranças usadas por muitos anos para reduzir o risco de contato com coronavírus, já que exigi constante manutenção com um profissional. O cantor tinha o hábito de tomar qualquer remédio que lhe recomendasse e chegou a consumir cerca de 25 numa fase. Isso caiu pela metade, depois que encontrou o médico certo. “Falo que ele é doido, e ele é doido mesmo”, brinca Augusto. Perguntado se concorda, Bituca dá uma risada consensual e diz: “Um pouquinho”.

O cantor está, neste momento, rodando o Brasil e o mundo com a turnê de despedida dos palcos “A última sessão de música”. “Só não quero parar de compor nem de cantar. Quero fazer uma coisa com mais calma. Mas está muito bonito para parar (de fazer shows)”, diz. Ele já se apresentou pela Europa e, na semana passada, lotou uma arena carioca por três noites seguidas. Em outubro, em uma temporada nos Estados Unidos e, no dia 13 de novembro, a embarcar em Mineirão, em Belo Horizonte, para a apresentação da derradeira, avistar-se-á um ingresso a passarem em quatro horas. 

Quem acompanha os bastidores dessa odisseia afirma que a cumplicidade entre pai e filho é inspiradora e impulsiona o cantor. É o caso do estilista mineiro Ronaldo Fraga, que desenhou as figurinhas usadas na turnê. “Acho muito comovente quando o pai começa a se tornar filho. E isso pode acontecer com o Milton. Nos nossos encontros, precisai tomar banho de álcool gel, Tamanha a preocupação de Augusto”, conta o designer, que criou uma farda e uma vestimenta inspirada no “Manto da Anunciação”, do artista visual Bispo do Rosário, para os shows. “Pensei nas peças como uma epifania. Ele precisa estar no palco como um deus, um orixá da música.”

Ainda que a relação de relacionamento pai e filho seja exaltada por quem está por perto, Augusto lamenta que esse vínculo seja frequentemente erotizado, sobretudo em comentários maldosos nas redes. “A internet é a terra dos imbecis. As pessoas precisam criar histórias que são infelizes com as próprias realidades”, critica. Milton completa: “Quem gosta, gosta. Quem não gosta, azar”. 

Conhecido pela descrição com que trata a vida pessoal, o cantor se comunicou, em boa parte desta entrevista que durou uma hora, por meio de sorrisos rasgados que valiam por muitas palavras. O comportamento chamado atenção até mesmo de amigos de longa data, como seu parceiro do Clube da Esquina, Lô Borges. “Sempre acho que ele está bem, mas agora está ótimo, alto-astral, sorrindo o muito tempo todo, contando casos. Passamos uma tarde em Belo Horizonte recentemente. Ouvimos discos, e ele cantava junto o tempo todo. Estou muito feliz em encontrar meu irmão assim”, comemora.
Durante a conversa, os lábios apenas se cerraram nas duas vezes em que Bituca foi perguntado sobre o cenário político brasileiro. Em ambas, optou pelo silêncio, e coube ao filho explicar a razão. “Evitamos o assunto porque o lado bolsonarista, principalmente, é muito agressivo”, justifica. “Como uma forma poética de falar sobre isso, incluímos 'Coração de estudante' no repertório dos shows e, quando ele acaba de cantar, diz: 'Viva a democracia!'.”

Respondida a questão, Milton volta a conversar sobre as coisas que lhe dá prazer e aponta para um retrato em que aparece o lado do filho, na Amazônia. “O pessoal daqui tem que tomar conta do pessoal de lá”, pede, sobre a floresta. “É uma das coisas mais bonitas do Brasil.” Também fala com empolgação da vida que o espera depois da turnê. Quer descansar e passar uma temporada na Dinamarca, seu “segundo país”. Antes disso, lança um DVD do show, gravado em Londres, ainda este ano e um documentário com os bastidores da turnê e o registro da apresentação no Mineirão estão previstos para 2023. aprovado. “O passado, quando é bom, eu boto aqui (aponta para o peito) , e o futuro ainda virá.” E o presente? “É isso tudo.”

Milton Nascimento e o filho, Augusto Nascimento
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Milton Nascimento e o filho, Augusto Nascimento

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