Acostumado a receber a imprensa em sua casa na Ilha da Gigoia, Barra, Neville D'Almeida, 79 anos, preferiu pegar o metrô até a Praça Antero de Quental, Leblon. Dali, seguiria para sua visita semanal a Jorge Mautner, que mora perto.

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Neville D'Almeida quer fazer sequência de
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Neville D'Almeida quer fazer sequência de "A dama do lotação" com Anitta

Ansioso pela estreia de " Neville D'Almeida - Cronista da beleza e do caos", documentário de Mário Abbade, o cineasta mais censurado do Brasil - e que soube vencer a censura unindo a invenção do cinema marginal com o tino comercial - usava seu clássico lenço no pescoço.

Há 20 anos sem vencer um edital, Neville D'Almeida anuncia uma bomba contra o que vê como "ditadura do bom gosto", ou "censura dos festivais". Com roteiro pronto, "A dama da Internet", um thriller feminista, promete uma trama cheia de... vazamentos.

Para suceder a Sônia Braga, estrela de "A dama do lotação" - um dos campeões de bilheteria nacionais - o cineasta anuncia que vai convidar a cantora Anitta para viver uma mulher que "sabe botar os homens em seu lugar: a lata de lixo".

O que sentiu ao se ver num documentário?

Foi muito gratificante. Ajudou a me conhecer melhor e aumentou a minha autoestima. O que falava há quarenta anos, continuo dizendo. Não tem essa coisa de que era jovem demais, de que era bobo, estava bêbado. Nada. Eu nem bebo. 

Mas entorna mágoa...

Não é mágoa. É revisão histórica. Meus três primeiros filmes foram censurados, interditados e jamais vistos. É como ser enterrado vivo. Todos ficaram em cima do muro. Inclusive companheiros. Mas eu não aceitei a censura. Acreditei na liberdade. E virei o jogo. 

Você é um grande crítico da crítica

Existem grandes críticos no Brasil. Eu mesmo me formei na crítica. No Centro de Estudos Cinematográficos (CAC) de Minas Gerais, mais importante cineclube do Brasil. Glauber saiu da Bahia e foi a Minas. Achava que o Cinema Novo começaria lá.  Mas você sabe como são os mineiros: ficaram quietos, ninguém deu bola para ele.

O que não posso me conformar é em ver as pessoas desinformadas em relação ao cinema de Neville. Eu vi cinema soviético, sueco, francês, italiano, mexicano, brasileiro, espanhol. Estudei cinema nos EUA e fui expulso. 

Por quê? 

Eu disse ao meu professor: "what about  Bergman, Eisenstein, Renoir, Rossellini, Fellini, Antonioni, Godard"? E ele: "my friend , só existe um cinema, o americano". Respondi que ele não sabia nada, era um medíocre. Bom é originalidade. Bom é invenção. É criação.

Vou te falar uma coisa. Desde o pós-guerra houve três revoluções no cinema: neorrealismo italiano, Nouvelle Vague francesa e Cinema Novo brasileiro. Dos três, o mais criativo, interessante, foi o Cinema Novo.

Eu morava nos Estados Unidos. Quando vi "A Grande Cidade", "Ganga Zumba", "O Desafio", do Sarraceni, Glauber, fiquei muito tocado. Esses caras são maravilhosos. Jovens entusiasmados, cultos, interessantes. Mesmo sabendo desde o início que não era meu caminho.

Nos EUA estavam Coppola e Scorsese começando. Pensei: eu não tenho por que ficar aqui. Achava que o brasileiro era o cinema mais moderno do mundo. E era. A paixão. O entusiasmo. Como era no meu cineclube em Minas. Meu caminho, contudo era o de uma outra liberdade.

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Que liberdade? 

Neville D'Almeida
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Neville D'Almeida

Em "A Dama do Lotação" as cenas só tinham uma tomada. No lusco fusco, agora, faz, late, bate, tira o cinto, dá chicotada no homem. Cinema é transe. É psicodrama. Criar o momento. Nelson Rodrigues dizia: "se o cinema não nos oprime, não nos ofende, não merece existir". É o que espero.

Este cinema de fritar bolinho, de atender telefone, abrir porta, fechar porta, ligar o carro, desligar o carro. Pô, não ferra! Eu fiz teatro, história das artes, improvisação, postura corporal, dicção, até maquiagem. Hoje qualquer um que vem da publicidade acha que pode dizer para um ator "faz aí".  O cinema é o império da hipocrisia. 

Não sobra nada de bom?

Existem exceções. César Oiticica Filho, Fábio Carvalho, Anna Muylaert, Petra Costa, Tamur Aimara, Beto Brant. E Cacá Diegues, um mestre, que faz um cinema mundial. Claudio Assis é fantástico. E o Kleber Mendonça. Eu não tinha gostado de "Aquarius", mas "O som ao redor" tem grande valor e "Bacurau", se Cannes fosse mais sério, levaria a Palma de Ouro. 

Então, que império da hipocrisia é esse? 

Na ditadura, a censura se baseava num código. Não pode Trotsky, Guevara, então, a polícia tesourava. Hoje temos uma censura em escala: a do produtor, do distribuidor, das comissões de seleção. As sedes da censura estão nos palácios dos festivais, regidos pela ditadura do gosto. Eu gosto, você fica. Eu não gosto, você sai.

Quem manda é o "curador", coisa que não existia em cinema. Ele impõe sua ideologia de gosto. Se não curte você, seus óculos, as críticas que faz, suas ideias, sua liberdade, sua visão do sexo, danou-se. Mais triste: o mesmo cara que é curador daqui escolhe o brasileiro que vai para Berlim, para Cannes. 

Pode dar um exemplo?

Eu sou um exemplo. Não entro num Festival do Rio há 20 anos. O documentário que estreia hoje passou em Roterdã, ganhou prêmio fora, mas não foi exibido no Festival do Rio em 2018, ano em que eu fazia meio século de carreira. Nos mesmos 20 anos, não passei em nenhum edital. Há uma corriola. Igrejinhas culturais perseguindo artistas que não interessam, ou que falam de forma desmedida. Eu não me calo, não.

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Durante a ditadura, seu ponto de virada foi "A dama do Lotação". E hoje? 

Neville D'Almeida
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Neville D'Almeida

A mulher do século XXI é outra: é "A dama da internet". A daquela época procurava se libertar através do sexo. A mulher de hoje faz com o homem o que ele tem feito com ela nos últimos 5 mil anos: maltrata, espezinha, humilha, ofende, e o põe em seu "devido lugar": a lata de lixo. É uma libertação existencial. Revoltada com milênios de trapaça, na era dos vazamentos ela vai expor o homem nas redes. Vou chamar a Anitta para o papel.

Sinopse? 

Uma mulher se casa. Ainda acredita em amor, felicidade, família. Aí, um dia ela está na piscina pintando uma tela. Vai buscar na garagem uma tinta e vê o marido pegar o carro. O celular toca e é amante. "Amor, estou chegando", ele avisa.

A esposa, na moita, entra no porta-malas. Lá pelas tantas entra a amante. No motel, ela sobe escondida, espia tudo. A faxineira, interpretada pela Maria Gladys, se compadece. Aí começam a armar para o marido e para geral. Cria-se um perfil falso. Motéis cheios de câmaras. A Gladys será o pivô...  um pivô ativo, já vou avisando.

Por que Sonia Braga não quis falar no documentário?

"A dama do lotação" era tão parecida com ela que ela achou que era sobre ela. Renega o melhor papel de sua vida. Independentemente do que ela acha, se é que acha, a Sonia é o que é: uma das maiores atrizes do mundo de todos os tempos. 

Você está de olho na cena política? 

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Neville D'Almeida

Entramos numa caverna. As coisas mais importantes da vida são as mais combatidas nesse governo. O meio-ambiente, a igualdade, a educação e a pesquisa, a busca científica, a filosofia e sociologia. Mas o que nos levou a isso foi a ausência de autocrítica. Nenhum regime sobrevive dizendo "eu não fiz nada errado". Mas os governos passam. O cinema fica.

Quando questionado se ele fazia uma autocrítica, Neville D'Almeida  não só declarou que sim, como confessou que não sabe controlar as emoções:  "Não sei controlar emoções. Deveria ser mais contido. Mais inteligente. Não me deixar levar pelos impulsos baratos. Podemos vencer batalhas, mas difícil é vencer a nós mesmos. Temos a obrigação de aniquilar o ego. Quando terminar essa entrevista, vou para casa e, no metrô, pensar: falei demais, eu sou uma besta. A vida é uma obra em progresso".

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