Donald Trump é o grande catalisador da era da pós-verdade, palavra eleita a mais importante do ano de 2016, ano da eleição do atual ocupante da Casa Branca, pelo dicionário de Oxford. O fato é mencionado ainda no primeiro capítulo de "Pós-Verdade: A Nova Guerra Contra os Fatos em Tempos de Fake News" ( Faro Editorial, 144 páginas, R$ 29,99), do experiente jornalista britânico Matthew D`Ancona.
D`Ancona, colunista do Guardian e que já colaborou com importantes publicações como The Spetator e The New York Times, tenta, em entrevista ao iG , dimensionar o problema global representado pela ascensão das fake news .
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Em seu livro, o britânico recorre ao episódio epistolar da posse de Trump, em que se criou uma celeuma a respeito do público presente a prestigiá-lo, para observar a maneira como a pós-verdade se estabelecia como tônica de sua administração.
Sean Spicer, secretário de imprensa do governo Trump, afirmou em coletiva que a cerimônia de posse fora "fora a maior audiência de todos os tempos, presencialmente e em todo o mundo, ponto final". Um jornalista da NBC disse que em 2009, nas fotos, o público parecia maior. Spicer então disse que essa "confusão" ocorria porque o novo piso branco que revestia o National Mall tinha o efeito de "destacar àreas onde as pessoas não estavam, ao passo que nas posses anteriores, a grama eliminou esse visual".
No dia seguinte, com a polêmica ainda tomando conta do noticiário norte-americano, a assessora do presidente Kellyanne Conway disse no jornalístico "Meet The Press", da NBC, que havia uma explicação perfeitamente razoável para o imbróglio. Ao âncora Chuck Todd disse: "Não seja tão radical em relação a isso, Chuck. Você está dizendo que é uma mentira [...], Sean Spicer, nosso secretário de imprensa, apresentou fatos alternativos a isso".
Segundo os cálculos de D`Ancona, nessa curta declaração, a alta funcionária da Casa Branca não só reconhece a alvorada da era da pós-verdade, como a adota. Escreve o autor: " O jornalista da NBC podia considerar a afirmação de Spicer uma mentira, mas, da perspectiva de Conway, era uma falta de compreensão das novas regras do debate político. Não havia realidade estável e verificável, apenas uma batalha incessante para defini-la ".
Nesse contexto, a pós-verdade pode ser vista como uma subversão popular do dito de Nietzsche de que "não há fatos, apenas interpretações".
Na entrevista a seguir, o jornalita britânico aponta os melhores mecanismos para prevenir e evitar a disseminação de fake news, observa os cuidados a serem adotados pelos brasileiros com as eleições à espreita e vê nas bolhas de informação um mal difícil de ser superado.
iG - Quando podemos estabelecer o começo da era da Pós-Verdade?
Matthew D`Ancona - Podemos afirmar que a era da Pós-verdade se tornou uma realidade efetiva em 2016, quando de fato tudo o que se falou por décadas se tornou um fato com a eleição de Donald Trump. Mas a primeira vez que o termo foi utilizado da forma como conhecemos sua definição hoje foi em 1992, quando o escritor sérvio norte-americano Steve Tesich escreveu um artigo para a revista The Nation falando sobre como a população americana tinha se voltado contra a verdade e começado ela própria a construir novas verdades e teorias conspiratórias depois dos escândalos de Watergate. Ele afirmava que os americanos como um povo livre haviam livremente optado por não aceitar a verdade, de preferir a pós-verdade em seu lugar.
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iG - Você acredita que Donald Trump e o Brexit são os maiores casos nesse contexto? Por que e como isso aconteceu?
MA - Sem dúvida! A eleição de Donald Trump e a saída do Reino Unido da União Europeia mostram um claro levante contra a ordem estabelecida e a demanda por uma mudança, que nesses dois casos, foi mal definida. As duas “insurreições” refletiram um novo e alarmante colapso de poder da verdade como motor de conduta eleitoral.
Trump não é um político, não tem quaisquer ambições políticas, ele é um showman. Para Trump a história importava mais que os fatos. E foi exatamente sobre essa base que ele fez sua campanha em 2016. Em vez de alimentar à força o eleitorado com um inventário de fatos e detalhes de seu currículo, ele bramiu uma narrativa que impôs, até certo ponto, uma ordem bruta sobre as complexidades mutáveis da vida moderna. Ele foi explicitamente desagregador ao prometer a proibição da imigração de muçulmanos, um muro ao longo da fronteira com o México, um retorno ao protecionismo econômico. Ofereceu à grande massa de eleitores brancos uma série de inimigos contra quem eles poderiam se unir, uma história na qual seriam capazes de desempenhar um papel e um plano mítico de “Tornar a América Novamente Grande”. O efeito foi narcótico, em vez de racional: melhor uma narrativa fantasiosa que parecia boa do que nenhuma.
O mesmo aconteceu com o Brexit, que aliás, usou da mesma técnica de Trump de fazer um fato se tornar algo emocional, de inflamar as massas contra argumentos, do triunfo do visceral sobre o racional, do enganosamente simples sobre o honestamente complexo. Eu me dei conta de que pessoas mais jovens, por exemplo, não foram pegas de surpresa como nós, adultos, informados, preparados fomos. Por isso resolvi pesquisar para tentar entender o que eles viram que nós deixamos passar.
iG - Como as mídias sociais impactam na criação e disseminação das fake news e como isso pode ser prevenido?
MA - Hoje com o advento das redes sociais qualquer pessoa em qualquer lugar pode gerar conteúdo, gerar informação. Uma ferramenta como essa, em que não há qualquer tipo de checagem é o berço para as fake news.
Uma notícia falsa que é compartilhada por milhares de pessoas ganha o peso de uma verdade, e muitos dos internautas hoje consomem informação somente nesses canais, ou seja, eles não checam se aquela notícia na timeline é um fato em outros meios como a imprensa, por exemplo. E é assim que uma fake news ganha corpo, quando o receptor daquela informação não se dá ao trabalho de buscar mais informações em fontes diferentes, e em questões de minutos, os compartilhamentos já espalharam uma notícia falsa ao redor do mundo.
E é justamente esse caráter das redes sociais que dificulta ainda mais uma prevenção contra as fake news . Num universo incrivelmente gigantesco de informação, como é possível que alguma ferramenta cheque todas as informações ali colocadas? Já existem hoje uma série de políticas de compartilhamento de conteúdos em diversos aplicativos de redes sociais, no Google, nos sites de imprensa, que nasceram com o intuito de eliminar esse tipo de material na internet ou aponta-los como falsos, mas se compararmos a prevenção com a disseminação, não estamos nem perto de realmente ter algum mecanismo eficiente para acabar com as notícias falsas na web.
iG - A política é o cenário mais acolhedor para as fake news. Por que as campanhas e toda a dinâmica de comunicações sobre a política e políticos estão tão contaminadas pela pós-verdade? É possível mudar isso?
MA - A política em todo mundo segue uma mesma receita, usa a narrativa como forma de maquiar a realidade, o famoso discurso populista. Em qualquer lugar do mundo você vai perceber o mesmo perfil de discurso: o de não oferecer soluções possíveis para os problemas da sociedade, de não lidar com a verdade como ela é, e sim de contar uma história que não poderá ser colocada em prática, mas que aos ouvidos da população soe como o único caminho a ser seguido.
Um exemplo claro disso é como políticos em vários países lidam com a questão dos imigrantes. A maioria defende uma mudança brusca em leis, restrições, barreiras, todas as formas possíveis de isolamento desse “problema”. Mas como um país pode achar que todos os seus problemas sociais, econômicos e políticos são culpa apenas de um número maior de imigrantes vivendo dentro de suas fronteiras? É claro que para a classe política é mais fácil jogar a culpa nessa parcela da população, criando um inimigo a ser combatido, do que realmente apresentar propostas eficazes para gerar melhores serviços para todos. Esse é o mecanismo mais eficaz para a classe política: não oferecem soluções, mas criam inimigos para a sociedade enfrentar, e se autodenominam os únicos que podem liderar essa batalha.
Com essa narrativa eles tiram o poder da mão do povo, e o povo aceita que sozinho, sem “eles” nada pode ser feito. Para que esse cenário mude a sociedade precisa entender que “eles” somos nós! Nós temos poder para mudar, e não mudamos, esperamos que alguém o faça. Enquanto a sociedade estiver de braços cruzados para a sua própria responsabilidade política, nada vai mudar.
iG - As notícias falsas não são um problema do mundo moderno, certo? O que mudou?
MA - O que mudou foi que antes existia um esforço para esconder a verdade. Monstros totalitários batalhavam muito para esconder da sociedade a verdade, para convencer a população de que algo era ou não verdadeiro, hoje nós mesmos decidimos que preferimos as notícias falsas à verdade. Parece loucura, mas o que mudou foi que a sociedade não precisa ser enganada, ela quer ser enganada e ajuda a se enganar, geralmente calcadas em sua ideologia. Hoje é muito mais fácil que as pessoas acreditem numa mentira, porque elas querem acreditar.
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iG – As pessoas estão menos tolerantes com as divergências. Vivemos num mundo muito polarizado. Isso é um problema quando pensamos na luta contra as fake news? Como superar isso?
MA - Hoje as pessoas são conquistadas quando ouvem um discurso que toque o seu emocional. Aqueles que se consideram privados de determinadas coisas ou ofendidos de certa maneira com outras, vão seguir uma narrativa que diga que eles serão colocados em primeiro lugar, que serão valorizados, que sim, eu concordo com o que você diz, etc.
O desafio para quebrar essa sociedade infantilizada que busca um herói que irá salva-la, ou um pai que fará todas as suas vontades está justamente no discurso. Para que a verdade seja ouvida é preciso que a sua narrativa, a forma como ela é oferecida, apresentada, reconheça as angústias daqueles que se sentem deixados para trás, mas sem o apaziguamento das intolerâncias alimentadas por essa inquietação. Precisa levar em conta a alienação gerada pelo ritmo da mudança global, sem iludir o público que esse ritmo tenderá a arrefecer.
iG - A fé das pessoas nas instituições está abalada? Esse é um problema mundial já que recebemos informações sobre tudo o tempo todo?
MA - Por mais que o eleitorado moderno despreze os políticos, ainda se volta automaticamente para eles em busca de soluções para tudo. Nossa resposta instintiva para um problema é dizer: “Eles têm de fazer algo a esse respeito.” Mas quem são “eles”? “Eles” costumava ser “nós”. Nós nos acostumamos a delegar a responsabilidade cívica apenas a classe política, e quando nada acontece, perdemos a confiança. Mas a confiança não existia de verdade. Mas podemos ter uma certeza: a renovação da cidadania não será imposta de cima para baixo. Se o povo quiser o fim da era da pós-verdade, deve querer por si mesmo. Se ao deparar-se com suas consequências desagradáveis quiser uma mudança, deve exigi-la. A frase “poder do povo” degradou-se pelo uso exagerado, mas não é sem significado.
iG -O Brasil tem sofrido com sucessivos escândalos políticos e vamos enfrentar uma eleição presidencial e do legislativo esse ano. E claro, as fake news são um problema pra a Justiça Eleitoral, os políticos e a população. Quais seriam as suas recomendações, nesses níveis, para prevenir que as notícias falsas sejam dominantes nas eleições?
MA -Nós nos tornamos indiferentes, ou nos acostumamos, ao “fedor das mentiras”, resignados à atmosfera malcheirosa de afirmações de verdade conflitantes. Em outras palavras: as chamas do colapso democrático ainda não estão consumindo a nossa sociedade. No entanto, nosso detector de fumaça coletivo está com defeito.
É preciso que a população esteja atenta, que busque por informações, que ao se deparar com uma afirmação que no fundo sabemos que é apenas populismo, que a exponha, que não compartilhe. Você só consegue combater uma noticia falsa quando afirma: isso é uma mentira. Fechar os olhos, ser indiferente, também ajuda a propagar uma fake news . É necessário se tornar uma barreia, que impeça a inverdade de seguir. Quem dá força as fake news somos nós, quando a aceitamos. O poder de acabar com esse círculo vicioso está nas nossas mãos. Independentemente do que você pense a respeito desses movimentos específicos, concentre-se na forma, e não no conteúdo.
Não é difícil imaginar uma aliança similar e pouco coesa surgindo em resposta à pós-verdade e ao dano que isso já está causando em nosso tecido social: #nosconteaverdade. O toque de clarim “Não se lamente: organize-se!” é, em geral, associado à esquerda. Contudo, sua aplicação não precisa ficar limitada a alguma ideologia específica.
iG - Você acompanha a política brasileira de perto? Quais suas impressões sobre a campanha presidencial brasileira?
MA - Não tenho acompanhado as notícias sobre as eleições brasileiras, então não consigo dar uma opinião nesse caso.
iG - Como os britânicos lidam com as fake news e como você gostaria que eles lidassem?
MA - Apesar de toda a conversa a respeito de apatia e desmotivação da sociedade — parte dela justificada, parte não —, permaneço otimista. Acho que, apesar dos truques psicológicos que utilizamos em nosso proveito, no final das contas somos constituídos para requerer a veracidade e para resistir à falsidade. Há uma voz interior em nós que resiste às mentiras ( fake news ), ainda que essa voz tenha sido atenuada (por motivos que veremos). O desafio é convertê-la de um sussurro em um rugido. A verdade está por aí. Tomara que nós a exijamos.
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