Kléber Mendonça Filho está tendo um mês agitado. Na verdade, o diretor tem tido anos agitados. Depois do barulho de “Aquarius”, que ganhou estreia com protestos em Cannes e polêmica ao não ser selecionado para representar o Brasil no Oscar, ele mergulhou de cabeça em sua produção seguinte, “Bacurau”.
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O novo filme traz diversas mudanças: a primeira é a co-direção com Juliano Dornelles , amigo e colaborador de longa data de Kléber. A segunda é que “ Bacurau ” sai do Recife, cenário costumeiro dos filmes do diretor, e vai para o sertão do Cariri, no Ceará. De semelhanças, traz a característica do inconformismo e imprevisibilidade. “Eu acho que é de extrema importância, pra mim como espectador, sentir que estou em outro território, que eu seja surpreendido pelo filme”, diz Kléber. E é exatamente isso que ele busca em sua filmografia, incluindo “Bacurau”.
A proposta do longa é incomodar. Kléber e Juliano brincam com a ideia de familiaridade e desconforto em todos os aspectos. Ao sair da fórmula clássica de fazer cinema, eles tentam surpreender o espectador, ao mesmo tempo em que criam situações - e até mesmo imagens que trazem conforto e familiaridade.
“O mercado está tentando fechar uma fórmula matemática para o sucesso e ao fazer isso todos os tique, trejeitos se tornam muito previsíveis – da história ao som”, comenta Kléber. Mas, se sair da “fórmula” gera reações inesperadas para o público, também deixa o filme com ares de “cinema de arte”. Embora não deteste a alcunha, Kléber também não vê seus filmes como filmes de arte. “É só uma maneira boba de definir alguma coisa e muito simplista. ‘Aquarius’ é muito popular, mas ficou nessa caixinha”, explica.
Para ele, um filme considerado artístico e com valor artístico também pode ser popular, como “Tubarão”, sucesso de bilheteria em 1975 ou “A Doce Vida”, de 1960.
Ele acredita que, depois da retomada do cinema nacional pós-Ditadura, nos anos 1990, essa divisão entre filme popular e filme de autor ficou ainda maior: “o cinema autoral é aquele que ninguém vai ver e é muito bom, e o que todo mundo vai ver é muito ruim”, diz, citando “Central do Brasil” como um dos poucos que quebra essa regra. Kléber acredita que é possível desfazer esses estereótipos, e “Bacurau” tenta fazer isso.
Passado e futuro
Sem precisar datas, “Bacurau” se passa “num futuro próximo”, que Juliano Dornelles acha que pode muito bem ser o presente. Dornelles foi diretor de arte dos outros longas de Kléber, antes de dividir a direção no atual. Os dois trabalham juntos há 10 anos e criaram a história do filme em uma conversa.
Kléber descreve a relação dos dois “como uma espécie de casamento” e garante que nunca houve dúvidas sobre dividir a direção. “Quando começamos a falar do filme já era um filme nosso. Escrevemos o roteiro a quatro mãos”, explica Juliano.
Da bagagem como diretor de arte, Juliano ajudou a criar o visual desse povoado (que não existe de verdade), como um pedaço escondido do mundo. Para construir esse lugar inexistente e futurístico, eles olharam para o passado. Os westerns americanos dos anos 1970 serviram como referência não só visual, mas em sua própria essência: “‘Bacurau olha muito para os filmes feitos na década de 70 que tinham essa coisa de rebeldia, questionamento, que deixou os filmes mal educados, raivosos, tentando desafiar o sistema”, explica Juliano.
Para ele, o período em que trabalharam no roteiro foi de intensa transformação e, coincidentemente, renovou o debate sobre passado e futuro: “nos oito meses que escrevemos o roteiro o mundo estava dando um giro em direção a algo que a gente achava que já tinha superado. É como se quiséssemos repetir os erros do passado. Falar de futuro tem isso – olhar para o passado e ver os mesmos erros repetidos”, completa.
O cinema no Brasil
Em algum momento deste processo há uma metáfora sobre ciclos, cinema e o retorno ao passado, mesmo que intencionalmente: “o cinema brasileiro é uma árvore que foi replantada nos anos 90 e hoje gera frutos”, analisa Kléber. Depois de um período de baixa produtividade, resultado da censura instalada no País, a produção nacional precisou de tempo para se reerguer, e chega na segunda década do século com qualidade, mas em risco de extinção.
Além de medidas tomadas pelo novo governo como cortes da Lei Rouanet e a extinção do Ministério da Cultura, os últimos meses tem gerado um enorme debate em relação a Ancine, órgão do Governo que regulamenta a produção audiovisual. “É difícil entender porque um governo ia ver essa árvore e mandar parar de alimentar, de por água”, continua o diretor. “Não existe combater algo que só traz beneficio”, completa Juliano.
Você viu?
Enquanto o debate corre pelo Brasil, porém, fora daqui as produções ganham cada vez mais prestígio. “De Sundance a Roterdã”, como pontua Kléber. Com “Bacurau”, ele e Juliano alcançaram um fato inédito para o país: o Prêmio do Júri em Cannes .
Meses depois, porém, “Bacurau” perdeu a disputa para representar o Brasil no Oscar, dando lugar a “A Vida Invisível” , de Karim Aïnouz. Foram quatro votos a cinco, deixando Kléber novamente sem a chance de fazer campanha em Hollywood.
O diretor já viu um filme seu perder essa chance, mas as circunstâncias eram outras. Em 2016, com uma situação política mais instável após o impeachment da Presidente Dilma Rousseff, diretor, equipe e elenco fizeram um protesto em Cannes com grande repercussão no Brasil.
Crítico ao protesto, o jornalista Marcos Petrucelli foi um dos escolhidos para compor o júri que decidiria o filme daquele ano. A nomeação de Petrucelli fez com que muitos no meio artístico questionassem a legitimidade da comissão. Anna Muylaert, Gabriel Mascaro e Aly Muritiba foram alguns dos cineastas que tiraram seus filmes da eleição em protesto, mas nem assim “Aquarius” conseguiu ser escolhido.
Para Kléber, porém, a situação atual não é a mesma daquele ano: “pelo menos dessa vez temos um verdadeiro cineasta com um filme que tem um verdadeiro prestígio. Como aquilo foi feito (em Aquarius) foi um ato de sabotagem”, comenta. Ao contrário de 2016, Juliano vê a seleção deste ano como “democrática e dentro da lógica do cinema”.
Fica claro que ambos gostariam que “Bacurau” tivesse sido eleito, mas mostram apoio pelo filme de Aïnouz: “Karim e seu filme têm total condição de serem indicados. Eu gosto e torço pelo filme”, diz Juliano.
Western brasileiro
Um dos fatores que Kléber Mendonça Filho aposta para surpreender o público com “Bacurau” é justamente a mistura de faroeste americano com um uma temática com cara de Brasil: “acho que o que o filme faz com o nosso amor pelo cinema americano confunda as pessoas. Talvez o normal fosse ver uma imitação do cinema americano, mas (o filme) é muito brasileiro”, diz.
Com isso, o longa referencia a visão hollywoodiana, mas não se apega a um estilo ou gênero. “Queria fazer algo q não é muito visto no cinema brasileiro e com isso abraçar o thriller, o filme de horror, o filme de ação. Mas tem um aspecto que volta para aquilo do nosso amor pelo cinema americano e fazendo filme brasileiro”, conta Mendonça sobre a mistura.
De “Era Uma Vez no Oeste” a “Assalto à 13º DP”, passando por “Robocop” – O Policial do Futuro (“o único bom”, na visão de Juliano), muitas são as fontes que abastecessem “Bacurau” e colaboram para sua originalidade. “’É um filme de identidade indefinida”, sintetiza Juliano Dornelles.
Essas referências e olhares para o passado fazem com que o público sinta identificação com o filme, enquanto são impactados pela estranheza tão buscada pelos diretores. “Acho que o cinema brasileiro sempre teve uma falta de intimidade com aquele filme meio descabelado que sai da estrada e vira terror”, comenta Kléber.
Ele não acredita, porém, que esse seja seu filme mais ousado: “todo filme é uma grande ousadia”, acredita. De fato, fazer filme no Brasil é por si só uma ação ousada, e no caso do novo esforço dos diretores tem valido a pena: em uma semana o filme já foi assistido por cerca de 150 mil pessoas e já superou R$ 2 milhões nas bilheterias.
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Incomodando dentro e fora das telas, “ Bacurau ” mostra que, ano após ano, o cinema nacional segue em busca de novas identidades, sem medo do novo.