Fala-se muito da perda de relevância do Festival de Cannes, mas o evento ainda é o lugar onde todo mundo que trabalha com cinema quer estar. E mesmo que existam diretores que não façam questão de estar lá, ou mesmo que critiquem abertamente o festival pelo que representa hoje (como Jean-Luc Godard), eles vão respeitar a decisão de seus produtores de desejarem emplacar seus filmes no festival, porque não é apenas uma imensa vitrine midiática, é também um mercado potente. É a garantia de que seus filmes serão vistos e vendidos, graças ao selo do evento.
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Para se ter uma ideia: por mais que a distribuição de filmes de arte esteja passando por um momento crítico, dos 21 títulos que competiram no Festival de Cannes do ano passado, apenas um não tem data de estreia marcada nos cinemas brasileiros (“Un couteau dans le coeur”, de Yann Gonzalez). O italiano “Lazzaro Felice” é a outra exceção, mas só não passou pelos cinemas porque foi comprado pela Netflix e, seguindo a política da companhia, foi lançado diretamente no serviço de streaming, em novembro passado.
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Nesse momento, estão em cartaz “Três faces”, de Jafar Panahi, e “Ayka”, de Sergei Dvortsevoy, que competiram e saíram premiados. “A árvore dos frutos selvagens”, de Nuri Bilge Ceylan, tem estreia prevista para a próxima quinta-feira (26) , e “Filhas do Sol”, de Eva Husson, está com lançamento marcado para agosto.
Mesmo filmes das mostras "Um Certo Olhar" (que faz parte da seleção oficial), e das paralelas "Quinzena dos Realizadores" e "Semana da Crítica" ganham visibilidade e aumentam seu potencial de circulação em um mercado disputado e cada vez mais difícil.
Projeto institucional
Durante anos, cada vez que o diretor artístico do festival Thierry Frémaux anunciava a seleção e não havia filmes brasileiros em competição, pairava uma cobrança em torno do cinema brasileiro como instituição.
Você viu?
Como, com mais de cem longas por ano, nenhum filme conseguia chegar lá? Uma cobrança que só poderia partir de quem está longe de compreender como funciona o circuito de festivais hoje, e o que o Festival — ainda — representa nessa cadeia.
São milhares de filmes inscritos todos os anos. A competição de é ao mesmo tempo o “spot” mais desejado e o mais difícil. São cerca de 20 vagas, a maior parte delas já garantida por nomes consagrados, a grande maioria da Europa. A seleção é centrada nos grandes autores e no eterno flerte com a indústria do cinema americano - o evento compete com os outros dois grandes festivais internacionais (Veneza e Berlim) como plataforma de lançamento dos filmes do Oscar.
Os filmes da competição são projetados em salas enormes, com telas gigantes e o melhor sistema de som disponível, com mais de dois mil lugares, na sua grande maioria preenchidos por jornalistas que não costumam primar pelo olhar generoso. Não é todo filme que tem as condições de preencher esse espaço e acalmar os leões. Quando “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho, chegou lá, foi um marco para toda uma geração do cinema brasileiro que vinha lutando por visibilidade e reconhecimento.
Mas para que “Aquarius” chegasse lá, oito anos depois de “Linha de passe”, de Walter Salles e Daniela Thomas, participar da competição, houve toda uma história construída antes, do ponto de vista criativo e também institucional, cujos esforços nunca deixaram de estar presentes em espaços de menos visibilidade, como a mostra "Um Certo Olhar" ou as paralelas.
Os curtas aliás, fizeram muito bonito na história recente do festival. André Novais Oliveira, por exemplo, que está em cartaz com o belíssimo “Temporada”, teve dois de seus curtas exibidos na "Quinzena": “Pouco mais de um mês”, em 2013, e “Quintal”, em 2015.
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A volta de Kleber Mendonça Filho ao Festival de Cannes com “ Bacurau ”, dirigido em parceria com Juliano Dornelles, competindo pela Palma de Ouro é a confirmação de talento, sem dúvida, mas "Bacurau" também o resultado de muitos anos de construção criativa e institucional. Que não seja uma despedida.