Estando no ano de 2019 e você não ouviu falar sobre Lollapalooza ou Nutella, por vezes na mesma frase, favor disponibilizar a receita de bolha intransponível. O festival de música, que nesta edição reuniu 246 mil pessoas ao longo de três dias, no Autódromo de Interlagos, em São Paulo, é conhecido por fazer um sucesso estrondoso, por vezes com um line-up de artistas com nem tanto sucesso assim – a diversidade, e os bolsos dos organizadores, agradecem. No entanto, há muito que não te contam sobre o Lollapalooza e que o glamour das redes sociais passam longe de denunciar.
Primeiro, você paga por, no máximo, um terço das atrações. Com distâncias significativas entre palcos, uma multidão sempre em busca de comidas e bebidas em seu trajeto e duas ou três centenas de aspirantes a influencers repetindo poses e fotos no meio do caminho, mesmo aquela “checada” em algumas músicas se torna um desafio e a verdade é que, se esse for seu plano (ruim), a probabilidade é que você curta mais o exercício físico do que a música.
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Aliás, uma outra coisa que pouco se comenta é que uma parcela esmagadora de frequentadores, de fato, sequer está ali pela música.
“Qual é essa?”
“Artic Monkeys”.
“Mas é o quê?”
“É tipo meio rock; é legal”.
O diálogo se fez ao meu lado, entre um rapaz de camisa xadrez e chapéu de aba e uma jovem garota de casaco vermelho amarrado na cintura, que o explicava o que seria “meio rock”, do alto de sua botinha de couro a deslizar no gramado. Sim, Artic Monkeys . Sim, headliner. Juro que ouvi com esses tímpanos que a terra há de comer. Claro, você vê quem cante a plenos pulmões, quem chora, curte como se não houvesse amanhã. Mas do monte mais alto de Interlagos, há quem olhe para frente e jure ouvir “tudo que o sol toca é seu, meu bem, para fazer check-ins no Instagram”.
O Lolla é para todos (quase)
Se há algo que a demografia imaginária de um festival de música não contempla é a incongruente proximidade de crianças pequenas dividindo os mesmos metros quadrados com marmanjos a baforarem seus recreativos psicotrópicos. A família tradicional brasileira, claro, está lá, incluindo pais, tias e todos os pacotes mirins – e ela faz fotos em conjuntos, com todos ornados em capas de chuva, com direito à hora do lanche. Lá, ela é conduzida pelos membros adolescentes do clã e, em vez de panelas, batem palmas mesmo. “Olha, esse foi animado, né?”. “Foi. Mas não precisa dessas tatuagens todas, até no rosto!?”, dispararam duas mulheres de meia idade, loiras (claro), após a performance de Post Malone , surpreendentemente ignorando seu figurino de quem acidentalmente entrou e saiu de uma garagem de Romero Britto.
No mesmo ambiente, como num mundo paralelo, casais de todos os tipos celebram ao som de música, grupos inteiros ficam chapados sem qualquer preocupação de discrição e a reclamação é apenas quanto ao mau tempo. É impossível negar que se o Lollapalooza fosse o retrato do Brasil, nossa história seria outra.
Não é para os fracos
Se alguém me dissesse que seria bom fazer uma dieta e enfrentar a esteira por no mínimo um mês para enfrentar o Lollapalooza , certamente riria ou entenderia como uma direta inconveniente. E, no entanto, não poderia estar mais errado. Incentiva-se aos montes o uso de transporte público.
Você viu?
Não mencionam, no entanto, que da estação ao portão principal, são 2,2 km, com subidas incluídas. No pacote ainda há filas até onde a vista alcança. O combo não sai por menos de 40 minutos de caminhada antes de ouvir qualquer nota musical e começar a encarar as escadarias e montinhos que dão acesso aos palcos.
E a volta? Ah, a volta! Não bastassem taxistas e motoristas de aplicativo escolherem corridas – após esperas superiores a 20, 30 minutos, o destino do participante médio é mesmo andar de volta ao metrô ou encarar ônibus que desafiam a lei fundamental de dois corpos não ocupando um mesmo espaço. Muitos, claramente, estão ali no maior clima de experiência antropológica quase inédita, o que se confirma na quantidade de braços e axilas ornando o seu InstaStories mais próximo.
Não é para os impacientes
Só há uma coisa que o participante médio do Lollapalooza aprecie mais do que mostrar que está no Lollapalooza e essa coisa é fazer fila. Não bastassem as naturais, feitas para acessar água, comidas, bebidas, milkshakes (sim, na chuva) e ambulantes (está pensando o quê?), com o fechamento e reabertura dos portões devido ao mau tempo neste final de semana , essa tendência natural ficou ainda mais evidente.
Com filas imaginárias que chegaram a 800m, divididos em duas partes, dentro e fora de um gradeado de proteção, as pessoas caminhavam cheias de reclamação, pouquíssima informação da organização, ainda que jovens, munidos de megafones (sim!) gritassem “isso não é uma fila. A fila começa no final do gradeado” (juro!).
Paciência é chave para curtir tudo que o festival tem a oferecer. Há um sem número de patrocinadores a distribuírem brindes, que vão de squeezes de água a mochilas e dias extras no festival. Basta enfrentar muitas deliciosas filas e tentar chegar cedo – se você for do tipo que levanta assim que o avião pousa, não choverei mais no molhado, não é?
Ademais, é preciso até mesmo reaprender a andar. Não há glamour que resista à quantidade de lama pela qual é necessário se locomover. Vá sabendo: opte pelas havaianas e dê adeus a elas (pois ao bom senso, já foi tarde). Após o festival, é possível que você descubra um numeroso clã de perguntas (e vídeos) tentando ensinar como tirar o lacre das pulseiras de festival sem danificá-la. Se o objetivo é a revenda ilegal de ingressos, não há resposta. Se não for isso, use alicate mecânico e de unha - numa operação de quase meia hora, afinal, se fosse para ser fácil, não seria o Lolla .
Não é para os lisos
Dizer que o Lollapalooza é um evento caro faz a nata revirar os olhos. Mas o que não te contam é mesmo o quanto isso vai além do ingresso. Esqueça as viagens via aplicativos com pernas acima de R$ 50 (chegando a R$ 110 para o Centro) ou a cerveja (patrocinadora) a R$ 13. Esqueça a lata de refrigerante mais cara que a garrafa de 2 litros. Esqueça o copo de água de 300ml vendido a R$ 6 mesmo com estações distribuindo água gratuitamente.
Nada é tão relevante quanto o cachorro-quente de R$ 16. Explico. Com um evento tendo início às 11h (e um consumo desenfreado de substâncias que provocam fome desenfreada posterior), o hot dog é ponto de partida para medir qualidade de vida em qualquer que seja o evento. E, este, amigo. Parte dos R$ 16 por duas salsichas, batata palha e molho rosê (o primo pobre do barbecue). Tem chesseburguer a R$ 22, pizza broto a R$ 25 e outras opções, mas nada, acredito, representa melhor que o tal lanche, Yorkshire escaldante, no mínimo.
Não é uma questão de hits
Musicalmente falando, o Lollapalooza sempre pareceu desafiar as métricas corriqueiras. A ideia é propor uma seleção de artistas que muito provavelmente você não conhece, mas que são expoentes ou promessas em seus campos de atuação e, assim, arrebatar o público com experiências inesperadas, acompanhando artistas à vontade como em poucos casos, dada tamanha recepção sem a usual cobrança.
Foi assim na edição 2019, com os muitos que não conheciam Jorja Smith (apaixonante em quantos níveis imagine-se possível). Também o foi com o quê de “estou em casa” de Artic Monkeys, que animou todos mesmo sem a cortesia de investir em seu repertório mais conhecido, como fez, e encantou, Sam Smith. Mais ainda com a arrebatadora apresentação de Lenny Kravitiz, que hipnotizou um público jovem que , em geral, sequer tem a devida dimensão do que o artista de 54 anos representa, mas teve a oportunidade de testemunhá-lo no palco.
Ou as gratas confirmações de rico e diverso futuro musical com o rock contemporâneo de Greta Van Fleet e o som contestador de Kendrick Lamar, ao qual nenhuma transmissão musical jamais fará justiça.
O Lollapalooza é uma rara oportunidade de uma experiência musical ousada, que não recorre (ainda) a figurões que vendam ingressos ao custo da desconexão de sua proposta, a exemplo de artistas baianas como grandes trunfos de festivais de rock em terras de samba e funk. Não é para qualquer um – nem qualquer joelho, nem qualquer ouvido. Se há limitação, melhor apostar no combo sofá e transmissão via Lollapaliso (dos mesmos criadores de “Rock in Rio Doce"). Esteja avisado. Exceto se seu objetivo for o Instagram, nesse caso, tranquilo. Afinal, pra quê música?