Quando Lucille Ball estreou “I Love Lucy” em 1951, iniciou-se uma nova era nas séries , pelo menos no que diz respeito às mulheres na TV. Foi a partir daí que ficou claro que uma protagonista feminina, forte e divertida, conseguia liderar um programa de TV por conta própria.

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"I Love Lucy" mudou os paradigmas para as mulheres na TV, mas levou muitos anos para que a temática evoluísse

Lucille teve, com seu programa, a maior audiência da TV aberta na época. Foi a primeira mulher a aparecer grávida, escrevia os episódios e foi filmar em Hollywood, contrariando os costumes da época. Mas, apesar de seu pioneirismo, nem sempre as mulheres na TV foram bem representadas.

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O mais comum, assim como a própria Lucy, era retratar as mulheres como donas de casa. Divertidas, originais e até com superpoderes, mas sempre com o jantar na mesa a espera do marido.

Esse conceito foi mudando ao longo dos anos e personagens independentes surgiam aqui e ali. Nos últimos anos, porém, com o aumento das produções para TV aumentou também a diversidade de histórias protagonizadas por mulheres. “ Sex and The City ”, que foi ao ar há 20 anos, marca essa nova era.

Falando de sexo

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"Sex and The City" abriu caminho para muitas temáticas entre as mulheres na TV

Carrie Bradhsaw (Sarah Jessica Parker) e suas amigas eram apresentadas como mulheres independentes, e com uma ideia muito diferente entre si do que era o amor. Samantha (Kim Cattrall) era uma relações públicas de sucesso que não tinha medo de admitir que preferia não se envolver romanticamente, optando por casos amorosos diversos. Charlotte (Kristin Davis) sonhava com um “príncipe encantado” e uma família de margarina, e Miranda (Cynthia Nixon) era focada em sua carreira, enquanto Carrie falava de seus relacionamentos em uma coluna no jornal.

A maneira como elas se comunicavam e falavam abertamente sobre sexo, masturbação e orgasmos era pouco usual na TV e se hoje em “Broad City” Ilana Glazer e Abbi Jacobson lidam com a masturbação como algo natural, talvez isso não fosse possível sem “Sex and The City”.

A maneira desinibida de falar de sexo ganhou novos contornos ao longo dos anos e atingiu novos patamares com “Girls” em 2004. Lena Dunham era a jovem Hannah, escritora cheia de inseguranças preenchidas por um sarcasmo e um egoísmo cortantes. Fora dos padrões físicos exibidos na TV, ela fazia o possível para se aceitar e se gostar. Hannah era uma novidade na TV. Por anos homens fora dos padrões ganhavam seus programas, mas poucas vezes uma mulher alcançou o mesmo feito.

A ambição das mulheres na TV

Séries atuais mostram a mulher como uma pessoa ambiciosa e focada no trabalho
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Séries atuais mostram a mulher como uma pessoa ambiciosa e focada no trabalho

A ambição de Lucy, tradicional dona de casa dos anos 1950 era ser uma popstar. Ela flertava constantemente com a possibilidade de trabalhar e, claro, causava um reboliço tentando. Se o simples fato de trabalhar era um desafio para Lucy, para Leslie Knope (Amy Poehler) o desejo era ainda mais difícil: se tornar presidente dos EUA.

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A personagem de “Parks and Recreation” era uma servidora pública da pequena cidade de Pawnee, mas que tinha grandes ambições. Uma das comédias mais inspiradas dos últimos anos mostra pura e simplesmente uma mulher que almeja prosperar em seu trabalho.

Ao chegar lá, porém, nada garante que ela vai conseguir. É o que Julia Louis-Dreyfus deixa evidente como a vice-presidente Selina em “Veep”. Com uma agilidade impressionante, a série se debruça sobre o dia a dia caótico, imprevisível e muitas vezes contraditório da Casa Branca.

Próximo dali, na sede da CIA, Carrie Mathison (Claire Danes) trabalha para acabar com o terrorismo, com uma narrativa bem diferente das outras. “Homeland”, como muitas antes, fala sobre a constante ameaça que os EUA sofre de seus inimigos, porém com uma diferença: a protagonista é uma mulher que vai até as últimas consequências para proteger o país, e provar que está certa no processo.

O que essas mulheres têm em comum é sua imensa ambição. Elas não se contentam em ser só mais uma funcionária da Casa Branca, só mais uma agente da CIA. Elas querem ser as melhores e esse é o propósito das séries.

Em “Sex and the City” não havia muito espaço para conversas profissionais, já que a história era focada na vida afetiva das personagens, mas se usarmos Miranda como exemplo, ela poderia ter facilmente se transformado em uma das sócias do escritório de Alicia Florrick (Julianna Marguiles) em “The Good Wife”.

Lugar de mulher

Donas de si: mulheres na TV ganham independência e suas próprias histórias
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Donas de si: mulheres na TV ganham independência e suas próprias histórias

Embora limitado a esse cenário de relacionamentos, “Sex and the City” dava indicações da independência dessas mulheres, com carreiras distintas. O termo “lugar de mulher é na cozinha”, ainda muito empregado nos dias de hoje, passa longe de ser uma realidade na série.

E nos últimos anos pudemos ver essa realidade mudar também em outras séries. Rainha dos dragões? Tem em “Game of Thrones”. A vida numa penitenciária feminina? Olá “Orange is the New Black”. Uma publicitária em um ambiente dominado por homens nos anos 1950? Prazer, Peggy Olson (Elizabeth Moss) em “Mad Men”. Resolver os problemas de uma emissora de TV que tem um diretor – homem – incapaz de fazer seu trabalho direito? É a função diária de Liz Lemon (Tina Fey) em “30 Rock”.

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Essas personagens evoluíram e ampliaram as possibilidades do que uma mulher pode fazer. E suas histórias ficaram mais complexas, permitindo que elas conciliem vida pessoal e trabalho, se esforcem, errem, se apaixonem, se decepcionem, enquanto nos impressionam com suas vidas, nos fazendo sintonizar semanalmente a TV (ou maratonar de uma vez só) para vê-las ser.

Donas de seu destino

Mulheres na TV
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Mulheres na TV

É possível que uma mulher não queira ter filhos? Enquanto o debate ainda causa certo furor na sociedade, seguimos encarando a figura materna como um ideal de amor incondicional e superior a qualquer outro.

A realidade, claro, não é assim, e isso também se reflete nas séries. O conflito entre mãe e filha é um dos pontos altos de “Gilmore Girls”, principalmente com Lorelai (Lauren Graham) e sua mãe Emily (Kelly Bishop), que discordam em tudo.

Embora Lorelai represente o ideal de mãe perfeita, os conflitos e as dificuldades que enfrentou como mãe solteira são parte integral da história. Nancy Botwin (Mary-Louise Parker), ao contrário da certinha Lorelai, segue caminhos ilícitos para sustentar a família depois da morte do marido, e se torna traficante de maconha em “Weeds”.

“Grey’s Anatomy”, cheia de mulheres com personalidades e conflitos dos mais diversos, mostra também uma personagem no coração da história com pouquíssima aptidão para ser mãe: Ellis Grey (Kate Burton), a mãe de Meredith (Ellen Pompeu). Uma mulher tão focada em suas ambições profissionais que deixou a família de lado.

O conceito de mãe, antes muito concentrado na boa mãe, também foi se ramificando nos últimos anos, permitindo que as produções adotem as mais diversas narrativas.

O céu é o limite para as mulheres na TV

Falhas, honestas e com caráter duvidoso: mulheres na TV ganham novas dimensões nos últimos 20 anos
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Falhas, honestas e com caráter duvidoso: mulheres na TV ganham novas dimensões nos últimos 20 anos

“Big Little Lies”, em tese, mostra um grupo de donas de casa. Na prática, essas mulheres evoluíram tanto desde Lucy, que o equilíbrio entre carreira e família é um ponto de passagem entre as intrigas, envolvimentos amorosos e violência que as torna tão complexas.

Issa Rae criou uma nova maneira de retratar as falhas femininas, da perspectiva da mulher negra, em “Insecure”. Com um bom caráter e certa dose de baixa-estima, a personagem comete deslizes que acabam colocando justamente esse caráter em questão.

“Sex and the City” não é a única série a se atentar para as mil possibilidades de retratar uma mulher na televisão longe do lugar comum. Mas a série se beneficiou dos tempos pré-streaming e foi tão feliz em sua concepção que continua sendo uma referência nos tempos atuais, onde uma série é lançada a cada minuto.

Mães ou não, boas profissionais ou não, essas mulheres acertam e erram como todos fazem no dia a dia. Claro, suas vidas são bem glamorosas e elas erram em meio a Martinis, mas erram. E a possibilidade de falhar e ter seu caráter questionado só engrandece as histórias.

O futuro

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"The Handsmaid's Tale", que estreou em 2017, é baseada no livro de Margaret Atwood dá nova dimensão ao registro das mulheres na TV

Com tantas evoluções do perfil feminino apresentado na TV, chega a ser irônico que uma das séries mais comentadas do momento seja justamente uma distopia onde as mulheres são submissas. “Handmaid’s Tale”, baseada em “O Conto da Aia” de Margaret Atwood, mostra a mulher subjugada, sem independência e vivendo apenas para atender os comandos de outros.

Mas, ao longo dos episódios, vemos essas mulheres se rebelando, se tornando donas de si. Vai ver é por isso que, apesar de irônica, a série tenha o timing perfeito para o momento. Oposta a “Sex and the City”, ela talvez não tivesse tanto impacto se lançada há 20 anos.

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Só hoje, com essa miscelânea de personalidades e personagens, podemos ver com clareza os dilemas de não ter personalidade ou vontade própria. A existência dessas mulheres em “Handmaid’s Tale” é um ato de resistência. Ato esse que tem sido desvendado pelas mulheres na TV nos últimos 20 anos.

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