O bloco Maluco Beleza, na região do Parque Ibirapuera, arrastou milhares de pessoas pelas ruas
Paulo Guereta/SECOM - 11.02.23
O bloco Maluco Beleza, na região do Parque Ibirapuera, arrastou milhares de pessoas pelas ruas

Como seguidor devoto da folia, não segurei a emoção no último fim de semana de pré-Carnaval em São Paulo. Mais do que nunca, o povo voltando a ocupar as ruas após dois anos de medos e incertezas na pandemia de covid-19 é um ato político. No lugar das máscaras, pouca roupa. Em vez de isolamento, aglomeração e beijo na boca. O luto ficou para trás para celebrarmos a vida.

Não por acaso, também é o primeiro Carnaval após um governo de extrema direita, que desprezava tudo aquilo que a festa representa: cultura e a liberdade de ser. Após anos de opressão e ofensas públicas institucionais, o brasileiro reencontra aquilo pelo qual é mais conhecido no mundo depois do futebol.

Mas me permito puxar a sardinha para o ziriguidum paulistano. Houve um tempo, não tão distante assim, em que a chegada do feriado de Carnaval significava uma única coisa para a maioria das pessoas: fazer as malas e se mandar. A cidade era taxada de sem graça, os poucos “bloquinhos” eram “inhos” mesmo e o Rio de Janeiro, uma referência inalcançável da arte de aproveitar a folia. Hoje, felizmente, falta rua para tanta gente disposta a extravasar.

No entanto, a transformação que realmente me pega é a das escolas de samba. Apesar de ter idade suficiente para ter vivido os últimos anos de desfiles na Avenida Tiradentes, já sou da geração Anhembi. Todas as minhas memórias carnavalescas têm o Sambódromo, inaugurado no início da década de 90, como cenário.

De lá para cá, vi os desfiles mudarem de um para dois dias. Testemunhei os dois anos de “tema único”, nos 500 anos da invasão/descobrimento do Brasil, em 2000, e nos 450 anos de São Paulo, em 2004. Assisti aos desfiles da cidade dando recorde de audiência na televisão. Acompanhei a Globo inaugurar sua bolha de vidro no meio da avenida. E também o aquário ser abandonado para dar lugar a um amplo estúdio ao lado do portão de encerramento, onde a festa (ou o choro) acontecem. Vi personagens da avenida virarem fenômenos, como Nani Moreira, reinando à frente da bateria enquanto tocava tamborim, e Ivi Mesquita, com um estilo único e inigualável de atravessar o Anhembi.

Nesse meio tempo, São Paulo elegeu seu primeiro rei momo fitness, exportou personagens para o Carnaval carioca, consagrou vozes como Eliana de Lima, Thobias do Vai-Vai, Royce do Cavaco, entre tantos outros.

Já como jornalista, vi baluartes levando a história na ponta do pé e da língua, entrevistei personalidades que, minutos depois, seriam reverenciadas em algum desfile – Rolando Boldrin, Marília Pera, João Carlos Martins, Renato Aragão, Cafú, Milton Nascimento, entre outros –, vi a criação da Super Liga das Escolas de Samba, assim como fui o primeiro a noticiar o fim da entidade dissidente. Teve ainda a tentativa de reunir apenas agremiações oriundas do futebol em uma competição paralela e com apenas uma escola inscrita. Aliás, vi Mancha Verde conduzindo o pavilhão da Gaviões da Fiel e Gaviões com o pavilhão da Mancha.

E quando o Ibama baixou na concentração do Sambódromo em busca de um iguana e uma sussuarana que entrariam na avenida? Encontraram duas beldades sambando caracterizadas como os animais. Outro carnavalesco anunciou o pouso de um helicóptero na pista durante o desfile. O moço só escondeu que a “aeronave” era bem da fajuta, feita de isopor e pendurada na alegoria.

Desfile da Unidos do Peruche, do Acesso 2, no Sambódromo do Anhembi
Reprodução/Youtube
Desfile da Unidos do Peruche, do Acesso 2, no Sambódromo do Anhembi

Grêmios com favoritismo certo cederam espaço para as “café com leites”, que dominaram os últimos campeonatos. Presenciei o surgimento da revista oficial do Carnaval e tive o privilégio de colocar meu nome no expediente de algumas delas. Acompanhei cadeiras voando, torcidas brigando e notas sendo rasgadas, deixando um “rastro de clorofila” no ar. Dei like quando a Viola Davis compartilhou um vídeo da gigante Dona Guga dançando no Instagram.

Ajudei a cobrar o início das obras da sempre prometida e adiada Fábrica do Samba; acompanhei quando as primeiras escolas transferiram os barracões para lá pois, mesmo com o projeto ainda em construção, a estrutura oferecida já era muito melhor do que os espaços improvisados embaixo de viadutos. E foi com imensa satisfação que, mais de dez anos depois, vi a Liga inaugurar a sede no espaço na última semana, consagrando a entrega do complexo de 14 barracões.

Fiz questão de relatar esse emaranhado de memórias para justificar o quanto foi emocionante assistir, no último sábado (11), à transmissão dos desfiles das escolas de samba do Acesso 2, o equivalente à terceira divisão do Carnaval. Foi um produto gerenciado pela própria entidade organizadora da festa paulistana e com qualidade de emissora de TV. Mais de 30 mil acessos simultâneos acompanharam as lives madrugada adentro.

Para o público do sambódromo, a entrada foi gratuita, o que não deixa de ser um presente para a cidade. Mas o principal, para mim, é: se atingimos esse nível de excelência na terceira divisão, imagine o tamanho da estrutura demandada pelo Grupo Especial. Hoje São Paulo, o tal túmulo do samba de Vinícius de Moraes, produz uma das maiores e mais diversa festas populares do mundo.

O Carnaval paulistano cresceu. E isso me enche de orgulho.


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