Chico Felitti investiga vida de Kat Torres em novo podcast
Camila Svenson/Divulgação e Reprodução
Chico Felitti investiga vida de Kat Torres em novo podcast


Chico Felitti provocou uma histeria coletiva inédita no Brasil em 2022: fez, de maneira involuntária, uma legião de pessoas se reunirem à frente de uma mansão abandonada, com direito a equipes de reportagem de policialescos e helicópteros sobrevoando o local, por conta de um podcast investigativo sobre uma mulher misteriosa que vivia escondida em uma propriedade caquética no meio de um bairro nobre de São Paulo. Agora, ele acaba de lançar A Coach, série que investiga o passado de Kat Torres, e tem elementos suficientes para fazer o público voltar a "surtar" com a trama que será desdobrada nos próximos meses.


Para quem não se lembra, Kat Torres é uma influenciadora digital brasileira que vivia nos Estados Unidos, mas acabou deportada e presa após ser denunciada por tráfico humano. A história dela é tão bizarra e cheia de imprecisões que sobrou até para Yasmin Brunet, obrigada a depor no caso para comprovar sua inocência no esquema.

Com uma vida construída de mentiras, a jovem saiu de uma situação de extrema pobreza e conquistou o mundo com suas e "meias verdades" --como Chico frisa na nova série. Seu "sucesso" internacional nasce quando ela forja um namoro com Leonardo DiCaprio e se torna manchete em publicações de todo o planeta. A partir daí, ela invade o mercado da moda, ganha uma legião de seguidores e passa a faturar alto como influenciadora e mais tarde se torna líder de uma seita. Mas hoje, por conta de todas estas farsas, está presa em Bangu, no Rio de Janeiro.

"Ela é muito astuta, muito perspicaz, só que acho que é o único aspecto que me pega dela é entender que todos nós somos um pouquinho como ela, no sentido de que a gente mente na internet. A internet é construída de meias verdades, é construída de mentiras, e ela foi lá e se tornou uma mestra de contar mentiras construídas com verdades de internet, conseguiu construir tudo o que construiu e conquistar tudo o que conquistou", relatou Chico à coluna.

Em nove episódios, a série A Coach investiga a trajetória dessa mulher misteriosa --que foi Miss Caieiras sem nunca ter pisado na cidade localizada na Grande São Paulo--, que está há dez meses atrás das grades aguardando o julgamento por conta da rede de mentiras que criou. Os dois primeiros episódios já estão disponíveis nas plataformas digitais de streaming. E nessa entrevista, Chico Felitti conta detalhes do que está por vir:

Chico Felitti é o criador do podcast A Coach
Camila Svenson/Divulgação
Chico Felitti é o criador do podcast A Coach


Qual foi o caminho para chegar nessa história?
Cara, é muito maluco, porque eu não sei quando eu decidi por essa história, se é que eu decidi por essa história. Acho que eu, você e metade do Brasil ficamos obcecados por essa história no passado, então ela ficou no meu cerebelo, cozinhando em banho-maria e eu amava, era obcecado por tudo que saía sobre Kat Torres e não consegui entender na época pela investigação do Twitter. E daí quando fechou de fazer com a Wondery essa história, era uma corrida que já começava no meio, porque eu já sabia das coisas. E é muito maluco isso, porque eu não tinha investigado profissionalmente, acho que tinha investigado como pessoa que vive no Twitter e existe na internet. Então eu nunca entrei num trabalho que já entrasse tão adiantado como esse, porque eu já sabia quem eram os principais atores.

Óbvio que da reza eu não sabia um terço. Não sabia do ex-marido bilionário de bitcoins, que é uma figura oculta. Mas eu já tinha algum traquejo. E foi maravilhoso navegar nas lacunas, porque é uma história cheia de lacunas. A gente ouviu a história na internet e as coisas não ligavam lé com cré, não eram concatenadas, não tinha uma história única que fizesse sentido. Foi maravilhoso ter esses seis meses para contar a história da maneira mais completa possível porque foi preciso. A gente teve que ir para Caldas Novas, para o interior do Texas, para Los Angeles, interior de Nova York, Caieiras. Foi preciso sujar muito sapato para contar essa história direito, porque é uma história cosmopolita pra burro.

Essa história pega dois pontos muito loucos do mundo moderno: as pessoas que constroem verdades e acabam se tornando notórias por meias verdades, e também as teorias da conspiração que são feitas em cima de uma falta de apuração. Até que ponto a internet, com threads de Twitter e teorias da conspiração, ajudou ou atrapalhou, te norteou ou te desviou do caminho durante o processo de pesquisa?
Cara, é a grande questão do podcast para mim. Tanto que te dou um spoiler: em um dos episódios, que é sobre a percepção da internet sobre o caso, a obsessão da internet e a investigação da internet, e o outro é uma investigação minha do mesmo caso. Então, o que a internet achava que estava acontecendo no Texas e o que eu investiguei e que de fato estava acontecendo no Texas, são duas histórias que não poderiam ser mais diferentes. Então acho que sim, foi uma história que só veio a público por causa da internet e possivelmente só teve essa prisão preventiva por causa da internet.

Mas também é aquilo que você disse, tem um manancial de informação, e muita informação errada, muita coisa inventada, muita teoria da conspiração que não ajuda a contar a história certa. Eu não demonizo a internet, eu amo a internet, mas sim, qualquer um pode falar qualquer coisa na internet. Você não precisa ter treinamento, não precisa ser uma pessoa que saiba apurar, não precisa ter compromisso com método de investigação, você não precisa ter compromisso com nada, você só vai lá e diz. E muita coisa é mentira. Então separar o joio do trigo acaba sendo meio o nosso trabalho, o meu e seu e de qualquer um que trabalha com notícia, entender o que é importante e válido. E muita coisa eu descobri com a internet, com informação de Twitter, mas muita coisa era baboseira que nunca existiu e que era descaminho, não era caminho, que te levava para uns lugares errados e que nunca tinham acontecido.


Um exemplo?
A história da Yasmin Brunet. O envolvimento da Yasmin Brunet é uma piada, tanto que no episódio que eu conto o que eu investiguei de verdade do que aconteceu a gente cita numa frase porque nem vale a pena colocar. Eu entendo que é tentador usar o nome da Yasmin Brunet nisso, mas é tão mentiroso e tão claramente fora de contexto e desconexo com a história que não tem por quê a gente colocar isso. Seria chancelar uma fake news, queira ou não queira. Então, acho que tem até na estrutura da série mais pra frente: essa é a versão que a internet criou dessa história e essa é a versão que eu consegui apurar dessa história, que é muito mais simples, é até meio singela de tão simples que é o que de fato aconteceu.

Logo no começo da série você diz que a Kat não quis te receber. De fato você não fala com ela em nenhum momento ou tem alguma surpresa no podcast?
Eu falo através da defesa dela, do advogado, através da família, mas ela em si está esperando o julgamento. Teve muitos momentos que foram "ela vai falar", a gente vivia nessa iminência. "Agora vai entrar no presídio de Bangu", "agora não vai"... porque ela quer falar, eu tive o "sim" dela não uma só vez, algumas vezes, mas ficou nessa de "e se isso influenciar no julgamento?". Porque ela ainda não foi julgada, não foi condenada pela Justiça, ela está em prisão provisória faz dez meses.

Quando você se debruça numa história dessa que envolve pessoas, como o caso da Mulher Abandonada e acaba se envolvendo com a personagem ao contar a história dela, tem a Kat Torres, que tem todo um contexto social que faz parte da realidade da maioria do nosso país, e que tem um viés religioso, questão de ambição e vitória. Como você separa o seu lado afetivo nessa história para não se deixar envolver com alguma questão pessoal que você possa a vir a se conectar com essas figuras?
Na Mulher da Casa Abandonada foi um pouco mais difícil, como também no livro da Elke Maravilha e do Ricardo, o Fofão da Augusta, porque partia do interesse que era muito pessoal e tinha uma relação que era até afetuosa com essas pessoas. Com a Margarida Bonetti começou com uma relação que eu achei que eu fosse ajudar de alguma maneira aquela mulher contando a história dela antes de saber de fato qual era a história dela.

Mas com a Kat Torres foi 100% profissional, acho que foi muito parecido com o livro que escrevi sobre o João de Deus, foi uma encomenda profissional de um tema que me interessava muito, mas que não passava... eu não sigo influencer, não gosto de coach, não acredito em bruxaria, então nada dela me pegava. O que me pega dela é uma astúcia, porque ela foi muito astuta, isso não dá pra negar, ela conquistou muita coisa graças ao mérito e inteligência dela, e ao uso da beleza dela. Porque não foi a beleza em si que conquistou, foi o uso dessa beleza num mundo machista.

Ela é muito astuta, muito perspicaz, só que acho que é o único aspecto que me pega dela é entender que todos nós somos um pouquinho como ela, no sentido de que a gente mente na internet. A internet é construída de meias verdades, é construída de mentiras, e ela foi lá e se tornou uma mestra de contar mentiras construídas com verdades de internet, conseguiu construir tudo o que construiu e conquistar tudo o que conquistou. Aí eu me dei conta que eu também minto na internet. Foi até uma coisa meio ingênua, mas eu sou bem bem torpe, e dou esse exemplo mais pra frente. No Dia dos Namorados eu compartilhei umas fotos com o meu marido e eu estava putasso com ele, a gente não estava se falando. Aí eu me paro e penso: O que eu sou diferente da Kat Torres, se eu tô compartilhando umas fotos beijando e lambendo o Renan [marido], sendo que não está tudo bem?

Essa não é a minha verdade. Mas também acho que em 2023 ninguém acha que rede social é vida de verdade, a gente está começando a criar essa maturidade de entender que é um simulacro, um teatrinho feito de mentiras feitas de mil verdades. Mil recortes bem específicos da verdade criam uma mentira grande, e nisso ela foi mestra, ninguém no mundo conseguiu fazer o que ela fez.

No exercício do Jornalismo a gente tem sempre por objetivo que a nossa apuração cause um efeito ou preste um serviço à população. No caso da Margarida Bonetti causou um efeito maluco, porque era uma mulher de passado criminoso e de repente a casa dela se tornou um point de turismo, com pessoas fazendo dancinhas de TikTok e publicando aquilo como se fosse engraçado. Você acha que o mesmo pode acontecer com a Kat, das pessoas irem até o presídio de Bangu e fazerem dancinhas na porta, usarem ela como motivo de chacota, ou o tratamento que foi dado nesse podcast pode direcionar as pessoas para outro caminho?
Acho que é um pouco imprevisível, não é o meu intuito, mas acho que pode acontecer é das pessoas terem uma imagem mais completa dela, mais 360 graus, como ser humano e eventualmente se compadecerem. Porque a partir do momento em que você entende como uma pessoa virou o que ela virou, e ali tem muita informação do que aconteceu... nós estamos falando de uma pessoa que passou fome, que apanhava na família, que relata ter sido vítima de violência sexual.

Sempre quando a história é contada de maneira completa dá um novo panorama. Acho que a nossa intenção é contar a história mais completa possível. Então não é uma história tão fácil quanto parece. Não é a loira patricinha que começou a mentir na internet, o buraco é mais embaixo. O que as pessoas vão fazer com essa história completa vai delas. Acho que é possível sim que as pessoas saiam admirando, porque a gente vive numa cultura em que as pessoas que são acusadas de crimes muitas vezes são glorificadas, não é essa a minha intenção, mas acho possível que aconteça.

Ter programas policialescos como Cidade Alerta e Brasil Urgente envolvidos numa apuração em cima da sua apuração depois que seu produto já está lançado, isso ajuda ou atrapalha na divulgação do seu trabalho?
Ajuda nos números, sem dúvida nenhuma. Não vou dizer que A Mulher da Casa Abandonada teria tido a audiência que teve se não tivesse programa vespertino policialesco toda tarde cobrindo, mas talvez saia do controle a versão contada. Porque eu tenho controle sobre a versão que eu conto no podcast. Agora não tenho controle sobre a versão que o Datena vai contar, sobre a versão que o TikTok vai contar.

Daí eu acho que cria uma avalanche de narrativas que às vezes as pessoas perdem o que veio de onde. E acabam sempre associando a tipo "tudo é do podcast". No podcast, por exemplo, eu não dizia onde era a casa, não dava o endereço. E muita gente entendeu "ah, você revelou onde mora a mulher da casa abandonada". Não fui eu, mas tudo bem, era uma informação pública. O nosso intuito é comunicar, o que vai ser recebido e as outras versões que vão ser feitas em cima precisa ter um desprendimento budista de entender que não é nosso.

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