Em 2016, Beyoncé lançava ‘Lemonade’, um álbum que impactou a indústria de forma avassaladora. Após quase 6 anos de espera, nesta sexta-feira (29), a cantora apresenta ao público o sétimo álbum de estúdio da carreira, o ‘Renaissance - Ato I’.
A princípio, o nome previamente divulgado foi encarado sem muitas comoções, pois o sentido só viria após o lançamento da primeira faixa disponibilizada, batizada de ‘Break My Soul’.
‘Renaissance’ chega com uma proposta que somente Beyoncé era capaz de proporcionar. Do ‘Renascimento’, a diva conhecida por sempre exaltar as raízes, pega o House Music e estilos derivados e devolve para a população preta.
Mas, para entender como isso é possível, precisamos voltar na história e analisar o contexto cultural em que surgiu o gênero musical House. Com propriedade no assunto, o DJ Rafa Balera e a artista Kiara Felippe, membros da BATEKOO, analisam o lançamento de ‘Renaissance’ e a cena atual do House.
O nascimento
Nos Estados Unidos, no final da década de 70, nascia um fruto não planejado: o House Music. Do fundo de bares undergrounds de Chicago, o gênero foi o primeiro a ultrapassar a bolha e fazer com que DJs fossem reconhecidos como superstars.
Para além da música, o House era um estilo de vida. Vida essa que tem origem a do povo preto e marginalizado. Tal como um refúgio, o House foi uma casa segura para a comunidade LGBTQIAP+ que, na época, era alvo de preconceito e violência e não podia contar com o apoio estatal.
“Creio que esse momento foi fundamental e importante inclusive para trocas, para momentos de união e diversão para essa parte da população julgada como não merecedora disso tudo”, comenta Balera.
Com a popularização, o House foi ganhando mais adeptos e se infiltrando em diversos lugares. Foi com ele que o estilo ‘Clubber’ ganhou espaço para se tornar uma tendência entre os jovens e frequentadores da noitada norte-americana.
Mas o que é ser ‘Clubber’? O estilo atingiu o auge na década dos anos 90 e era representado por pessoas que frequentavam danceterias. Com exaltação do neon e acessórios extravagantes, essas pessoas foram responsáveis por levar o House e o Techno para o mainstream, ou melhor, o deixando popular entre a população geral.
Mas tal como o rock, que também originou do povo preto, o House começou a ter as raízes enfraquecidas. Neste contexto, o gênero passou a ser elitizado e ser agregado por pessoas brancas.
O renascimento
Após anos da indústria musical sendo dominada por pessoas brancas, Beyoncé, a maior artista negra da atual geração, artista musical mais bem paga e a primeira a superar a casa dos bilhões no Spotify, além de ser a mais premiada do Grammy, usa do lugar de alcance para promover mudanças sociais.
Assim como em ‘Lemonade’, quando a diva escancarou os problemas raciais enfrentados pela população afro-americana, em ‘Renaissance’, Beyoncé utiliza o poder para devolver o house às mãos pretas.
“Esse resgate cultural vem sendo feito há um tempo, principalmente, pela galera preta LGBTQIAP+. A cena de house music está sendo retomada pela galera que criou esse estilo. E queen B tem um olhar muito crítico-social para entender a necessidade com uma certa antecedência, foi o que aconteceu com o Formation, por exemplo, aquela auto-leitura da população preta, da mulher preta”, reflete o DJ, mencionando a faixa do disco ‘Lemonade’.
Para além da dor
Na divulgação do novo álbum, Beyoncé publicou uma carta aberta aos fãs. No texto, a cantora expõe o que a fez pensar no novo projeto e quais foram os gatilhos que a levaram para a nova era. Abrindo a carta, a cantora explica que o projeto é marcado por 3 atos, o ‘Renaissance’ o primeiro deles. Criado durante a pandemia, Beyoncé conta qual foi o caminho para a inspiração nessa fase difícil.
“Criar este álbum me permitiu um lugar para sonhar e encontrar refúgio durante um tempo assustador para o mundo. Permitiu-me sentir livre e aventureira em uma época em que pouco estava se movendo. Minha intenção era criar um lugar seguro, um lugar sem julgamento. Um lugar para ser livre do perfeccionismo e excesso de pensamentos. Um lugar para gritar, libertar e sentir liberdade. Foi uma linda jornada de exploração”, declarou.
Assim como diz no texto, Beyoncé confessa que a pandemia também foi um momento de reflexão da própria existência. Sendo assim, ao considerarmos o papel social do ‘Lemonade’, em que a crítica social se fez presente com ‘dois pés na porta’, é válida a reflexão do que a fez partir do ‘bater de frente’ para o ‘vamos curtir’.
Para além da pandemia e a urgência da valorização da vida, a artista trans Kiara avalia se a mudança também pode ser fruto de um cansaço social sentido por pessoas marginalizadas, em especial o povo preto que constantemente é alvo de violência e usa do dia-a-dia para expor e denunciar a realidade.
“Estamos cansadas de relatar as nossas dores até porque vejo que isso não soma para nós pessoas negras e sim alimenta uma sociedade que sente prazer nas nossas dores porque ainda são nutridas pelo racismo. Está na hora de contarmos a nossa história através das nossas bocas, que antes da escravização éramos reis, rainhas, um povo livre e muito rico artísticamente e intelectualmente. Lembrar novamente de onde viemos e quem somos, nos incentivando a buscar nossa ancestralidade e história”, aponta ela.
Na mensagem da diva, fica claro que, sim, o álbum é um trabalho que retoma ao passado e Beyoncé deixa claro ao citar e agradecer um tio que a apresentou o house music. “Muito obrigada ao meu tio Jonny, ele foi meu padrinho e a primeira pessoa a expor para mim muito da música e cultura que serviram de inspiração para este álbum. Obrigada a todos os pioneiros que originaram a cultura, a todos os anjos caídos cujas contribuições não foram reconhecidas por muito tempo. Essa é uma festa para vocês”, homenageia.
Em 1979, um evento de basebol ficou marcado como ‘Noite da demolição de disco', pois um radialista incentivou ao público que assistiria a um jogo que levasse discos de vinil de dance music, incluindo o house, que seriam destruídos durante o intervalo. A ação foi promovida por fãs de rock cansados da ascensão da cultura da dance music. O evento registrou mais de 50 mil pessoas, com maioria branca.
A ação é marcada como um ato de caráter conservador, racista e homofóbico, já que os principais discos destruídos eram de artistas negros e o principal público do gênero era a comunidade LGBTQIAP+. Nos anos seguintes, a dance music deixou de ser tão popular e passou a ser vista com olhos tortos.
Com ‘Renaissance’, a mensagem é direta. Há a necessidade de reviver e prestigiar essa cultura que não foi reconhecida como deveria. “Essa era já fala por si só com o nome do álbum que é 'Renaissance'- Renascimento! Uma referência meio fênix, meio `vim pra quebrar tudo!`, e é o que estávamos esperando! Creio que a Beyoncé veio ensinar algo com esse álbum, assim como ela já vem fazendo há um tempo. E a mensagem é - House é música de gente preta! Aceitem! Isso foi tirado de nós durante muitos anos, e penso que ela está querendo devolver o House para galera preta!”, avalia Rafa Balera.
Fãs e festas
A aceitação do público não poderia ser diferente: os fãs estão eufóricos! A era house, aos poucos, já estava sendo representada nas boates brasileiras, de forma nichada, mas o estilo se mostrava como tendencia.
A BATEKOO é uma empresa criada por negros LGBTQIAP+ que se popularizou após organizar festas e eventos para exaltar a cultura vista como periférica. Do funk ao pop, rap, trap, hip-hop, e também o house e disco, o ambiente criado na festa se alinha com a perceptível proposta de Beyoncé: levar ao povo preto e LGBTQIAP+ curtição e o direito de viver a própria cultura.
Com o lançamento do álbum, uma festa de exaltação ao ‘Renaissance’ já está sendo organizada. O evento acontecerá em Salvador, na Bahia. Membros do grupo da BATEKOO, Rafa Balera e Kiara explicam o fenômeno que é Beyoncé.
“Ela foi uma das únicas referências pretas que uma geração teve e tirou disso a ser um exemplo do que pessoas pretas podem alcançar e conquistar, no caso, o mundo!”, celebra Rafa.
Assim como Rafa, Kiara concorda e enfatiza o poder de representatividade que a cantora norte-americana atingiu.
“Através da sua excelência ela conseguiu alcançar um nível de visibilidade e poder que a voz não pode ser calada. Ecoando e empoderando muitas pessoas e movimentos que ainda não alcançaram tudo isso”, reflete.