Mel Lisboa chega à Casa Julieta de Serpa, no Flamengo, numa manhã ensolarada de sábado para a sessão de fotos desta reportagem, com um vestido largo e confortável, um livro debaixo do braço (“O homem que amava os cachorros”, do cubano Leonardo Padura). Logo começa a ser maquiada, enquanto vai olhando num aplicativo alguma comida para pedir. Na correria de ponte aérea de Rio-SP, gravações da novela “Cara e coragem” e a peça “Misery”, que estava encerrando temporada, ela não conseguira nem tomar café da manhã. O repórter então se oferece para buscar uma comida ali perto.
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— Imagina, fala sério! — responde ela, num tom de quem não quer dar trabalho à equipe.
Aos poucos, era como se os minutos na suntuosa casa de arte centenária de decoração clássica fosse tirando o ar da mãe e artista da estrada em jejum para colocá-la na proposta deste ensaio fotográfico, de mulher perigosa que se delicia com a riqueza. Algo bem distante da intérprete, mas próxima da inescrupulosa alpinista social Regina, vilã da trama das sete. Ao voltar da primeira troca de figurino, com vestido longo, salto alto e brilhantes, ela traz nas mãos o par de tênis All Star velho de guerra, último resquício da Mel real e rock ‘n’ roll.
— O conceito de sucesso é muito relativo para cada pessoa. A Regina quer se livrar do passado de miséria, ela busca dinheiro e poder, o que para muitas pessoas significa sucesso — resume a atriz sobre sua personagem, que nesta semana irá conseguir impor condições para que Leonardo (Ícaro Silva) se torne seu noivo, conquistando também a sogra Martha (Claudia Di Moura). Depois que for morar na casa deles, ela ainda muda mais o seu visual e se sente a toda poderosa do pedaço, com o “sucesso” subindo à cabeça.
A cabeça de Regina, aliás, tem um longo megahair preto e, por isso, sua caracterização demora até sete horas a cada manutenção, de dois em dois meses. Na conversa sobre o contraste entre os estilos de atriz e personagem, Mel lembra do cabelão loiro à moda anos 1950 que usou para a Thereza da série “Coisa mais linda”.
— Tinha que ficar sempre com ele. Em todo lugar. Ia tomar uma cerveja num bar na esquina e estava lá eu com aquele cabelo (risos) — diverte-se.
Depois do streaming, uma série de trabalhos de áudio, teatro e cinema (inclusive independente), Regina marca a volta da atriz à Globo, após 14 anos. Seu último trabalho na emissora foi a série “Casos e acasos”. Depois de ser escalada para a maligna Regina em novembro de 2020, as gravações ainda foram adiadas duas vezes, começando apenas em janeiro deste ano. Mas antes disso, ela já ensaiava este retorno. Iria fazer uma novela global e uma participação na emissora, mas não pôde aceitar por conta de agenda de outros trabalhos. Depois foi escalada para “Malhação”, adiada por conta da pandemia e cancelada em seguida.
— Parece clichê, mas fiquei com a personagem certa. Além de estar voltando para o lugar que me projetou e me traz muitas lembranças, a quem eu devo muitas coisas na minha carreia. Retornar após ter trilhado uma trajetória fora da Globo também é muito gratificante. Estou me sentindo acolhida, isso é fundamental — pontua.
No entanto, o clichê do destino citado por ela parecia estar mesmo escrito nas estrelas. Antes deste trabalho, ela pediu uma consulta a sua mãe, a reconhecida astróloga Claudia Lisboa, que deu aquela olhadinha no céu da filha capricorniana.
— No mapa de trânsito, tinha uma questão de um certo retorno a coisas que já tinham sido um dia. Como se fosse uma volta a um lar antigo. De fato está acontecendo essa relação mesmo com a Globo, no momento que os astros indicaram. Foi uma coisa que a gente conversou bastante, que estava ali apontado e de que forma eu poderia equilibrar tudo isso — recorda Mel, que se entrega, usando da sua doçura para pedir os mimos da mãe: — É constante, estou sempre pedindo a ajuda dela. Digo: “Mãããe, vê como está meu céu”. Abuso um pouco da astróloga (risos). O mapa é um autoconhecimento, um objeto ao qual você pode sempre retornar. Com esse material, você consegue ter acesso a coisas muito interessantes sobre você mesma.
Sua ligação com Rita Lee, outra artista capricorniana, por exemplo, estava evidente lá. A cantora acaba de lançar a versão em áudio de sua autobiografia, disponível na plataforma Skeelo. Por pedido da própria Rita, foi gravado na voz de Mel, além da do jornalista Guilherme Samora. A relação entre elas começou quando a atriz viveu a cantora no musical “Rita Lee mora ao lado”, de 2014 a 2016.
— Rita foi assistir, a partir daí o nosso elo foi ficando cada vez mais coeso e mais forte. É uma honra ter isso no meu currículo. Me marcou profundamente, marcou minha vida. Por isso também nós seguimos juntas, de certa maneira. Foi um divisor de águas na minha carreira de um modo geral e na minha história no teatro em São Paulo — conta Mel, que mantém contato com a ex-mutante: — Ela é reclusa, fica no cantinho dela. Mas somos muito sintonizadas, é impressionante. A gente se fala algumas vezes por mensagem. Mas também não fico perturbando (risos). Ela tem um jeitinho que respeito muito. Sou fã incondicional. Ela é única, não tem nada nem ninguém como Rita Lee.
Mas se Mel prefere não perturbar a Rainha do Rock, a Canal Extra não fez o mesmo. Sem incômodo algum, no entanto, Rita logo respondeu à nossa pergunta e não poupou elogios à atriz, justificando por que a quis como voz de sua autobriografia.
— Mel Lisboa é quem me representa como ninguém. Na peça, ela me retratava lindamente e agora narrando meu audiobook! Essa menina, além de bela, é uma fera como atriz, cantora e contadora de história — resume a doce vampira, celebrando ouvir sua própria história com sabor de Mel.
De Anita a Rita
Se a atriz destaca a personagem da cantora, muitos ainda se lembram dela por sua estreia como atriz, na minissérie “Presença de Anita”, de 2001, um marco na história da teledramaturgia. Ela reconhece que o sucesso não tinha como não ser arrebatador, mas também não esconde a vontade de que o público olhasse mais para outros trabalhos feitos por ela nestes mais de 20 anos.
— É gratificante que lembrem e tenham este carinho. Mas é só que às vezes parece que tem gente que só vê isso. Não posso ter controle sobre o que as pessoas acham, pensam e querem ver de mim. Faço o meu trabalho e tento fazer da melhor forma. Sou muito grata pela minha trajetória — avalia Mel, que busca convidar o público para assistir a esses outros produtos também: — Faz parte da nossa carreira, estamos sempre chamando todos para prestigiar nossas peças. Sei o tamanho das coisas. O teatro é algo presencial e tem ali aquele número x de espectadores. Aí pega a TV aberta, ainda mais naquela época, tinha uma outra proporção.
Hoje com 40 anos, ela continua se jogando nos papéis como fez com a adolescente sedutora, que interpretou aos 19. E como bem representa o título da novela atual, é mesmo na cara e na coragem. Mesmo agora com mais experiência, a adrenalina segue lá em cima. Mas o medo e insegurança que diz ter não a impede de encarar o trabalho e a fez desenvolver uma habilidade impressionante para esconder o nervosismo.
— Sou superinsegura, mas finjo que não sou. Quando vou fazer a novela, em todas as cenas, quando dá o “gravando”, meu coração dispara. Fico nervosa sempre. Eu conto para as pessoas e elas não dão conta. O pessoal do áudio percebe, porque muitas vezes eles ouvem o meu coração pelo microfone de lapela, de tanto que bate acelerado. Aí tem que trocar de lugar — revela.
Os trabalhos então a empurram para uma zona que só parece de conforto, como aconteceu com a música. Filha do músico Bebeto Alves, expoente da canção gaúcha, e casada desde 2008 com o percussionista Felipe Roseno — que já trabalhou com artistas como Maria Gadu e Elza Soares —, Mel sempre gostou de se aventurar a tentar tocar e cantar algumas coisas, mas nunca ficava satisfeita com o resultado. Foi quando começou a atuar no teatro musical que o canto veio inteiro para ela.
— Sempre gostei muito, mas achava que não era capaz. O trabalho me fez ter que cantar. Então vamos — avalia ela, que não pediu ajuda técnica ao pai nem ao marido: — Existe um apoio emocional. Mas eu morro de vergonha, faço aula de canto escondida de todos eles (risos).
O todos a que ela se refere também inclui os filhos Bernardo, de 13 anos, e Clarice, de 10, que já se aventuram no piano. Para ver os filhos, ela vem se dividindo entre os dias de gravação da novela no Rio e sua casa em São Paulo. Algo com o qual eles já estão acostumados, já que a mãe tem diferentes rotinas a cada trabalho.
— Esta é a vantagem de estarem um pouco mais velhos, porque já têm uma percepção diferente. Não é que não sintam falta, mas eles entendem. Eu falo para eles que preciso trabalhar não só para pagar as contas, mas porque faz parte de mim. Sem meu trabalho, eu fico incompleta, sou feliz trabalhando. Ano passado, eu estava mais em São Paulo e de repente passei um mês inteiro fora. Na novela, isso não acontece, passo uns dias fora e volto. Não chego nem a passar uma semana inteira longe — conta.
O amor à profissão fatalmente vira um aprendizado imensurável para os filhos, assim como a sua vontade de estudar e se aperfeiçoar. A nova rotina fez ainda com que a atriz tivesse que trancar a faculdade de Letras. No ano que vem, sem a novela, ela tem planos de retomar e se formar.
— A Mel acadêmica é uma paixão. Adorei ter escolhido Letras. Trabalho com isso. A personagem é uma tinta no papel. Você lê aquilo e faz com que ela se tridimensionalize em corpo e voz. Olhar para um texto, para uma forma diferente, só faz você crescer, ampliar a sua visão — conta ela, que na rotina de trabalhos e estudos, acabou desenvolvendo um novo hobbie nos últimos dois anos: — Sou altamente viciada em podcasts. Ouço me deslocando, lavando louça, lavando roupa, arrumando a casa.
podcast também entrou na sua vida profissional, já que anda fazendo muitos trabalhos de áudio. Além do livro de Rita já citado, Mel gravou dois livros de Clarice Lispector e os podcasts de ficção “A ciência como ela é, a saga de Carlota” e três temporadas de “Paciente 63”, protagonizado por ela e Seu Jorge, que rendeu ao grupo o Prêmio APCA de Melhor Podcast, no mês passado.
Arte e mídia
Famosa desde o fim da adolescência, Mel não buscou uma carreira pautada por produtos essencialmente midiáticos. Recentemente, ela gravou o longa-metragem experimental “Foram os sussurros que me mataram”, que se passa todo dentro de um quarto, além do filme “Atena”. Nos últimos dez anos, ela não deixou de fazer teatro em momento algum, às vezes com duas peças no mesmo ano; com exceção do período da pandemia. Em suas redes sociais, é fácil encontrar projetos independentes, como o “#livemhistória”, sobre literatura; mas é raro ver alguma parceria de publicidade.
— Acho que isso tem a ver com a minha personalidade e com o que acredito. É claro que tenho que pagar as contas. Precisamos ter um pé na realidade. Tenho dois filhos, está tudo caro hoje em dia, então pior ainda. Não adianta também eu ficar num mundo de fantasia artística e acabar tendo problemas na vida real. Mas faço escolhas que são artísticas, sim. Prezo por isso. Acho importante para a construção de uma carreira sólida — avalia ela, que completa: — Na minha profissão, a consequência é a exposição. Ela pode ser muito benéfica, trazer outros trabalhos, mas também pode ser complicada, se não souber lidar direito com isso. Prefiro ser reconhecida do que ser conhecida. O reconhecimento, mesmo que por poucas pessoas, é mais gratificante do que eu simplesmente ser uma pessoa famosa. Para mim! Isso é muito pessoal. Não há julgamento algum aqui.
Essa construção, no entanto, ela sabe que é feita de degrau em degrau.
— Tenho total consciência de que essa solidez é mais difícil. Ela é mais demorada e mais a longo prazo. O retorno é mais lento, mas tem mais base. Nossa carreira é instável. Então buscamos estabilidade. O resultado não se vê de cara. Mas, à medida que o tempo vai passando, você vai vendo uma mudança de postura das pessoas em relação a você — celebra a atriz que aprendeu a conviver com as críticas desde o seu primeiro trabalho, e que, na batalha por seus objetivos, teria muito a ensinar para a sua Regina: — Os fins não justificam os meios, não é?
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