Interpretar José Leôncio em "Pantanal" tem funcionado como um processo psicanalítico para Marcos Palmeira. O ator levou um tempo até achar o tom do personagem e só conseguiu calibrá-lo quando se deu conta do motivo que o travava: a dificuldade em aceitar que envelheceu. Com jeito de garoto, mas prestes a completar 59 anos, dia 19, Marquinhos, como é chamado pelos amigos, precisou assumir para si mesmo que o tempo passou. Só aí conseguiu desatar o nó.
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— Eu me toquei que estava lendo o texto da novela como se ainda fosse o Tadeu (papel que interpretou na primeira versão) e tivesse 27 anos. Daqui a pouco, vou fazer 60 anos! Nem parei para pensar nisso ainda. A gente não se sente assim, né? Se não olha no espelho, ninguém se sente velho —diz ele, acrescentando que a ficção já lhe ajudou a destrinchar outros conflitos pessoais. — Às vezes, estou com questões que não sei como resolver e o personagem aparece com a solução. Zé Leôncio fez eu me ver como um homem maduro.
Não só isso. A experiência de encarnar o patriarca também provocou o ator a rever sua história profissional e pessoal. Marcos, que será homenageado por sua trajetória no próximo Festival de Gramado, tem pensado bastante sobre o que construiu e o que deseja daqui para frente.
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— O bom de envelhecer é que você tem mais chances para se tornar uma pessoa melhor com você mesmo. Sempre fui um ator dedicado, mas na juventude há uma dispersão natural. Hoje, estou mais focado, tenho uma compreensão melhor a meu respeito. E sem nenhuma crise. Não virei o intelectual que minha família queria, mas hoje brinco que estou lendo mais do que eles — diz, referindo-se às cerca de 40 páginas de texto que precisa decorar semanalmente.
As reflexões sobre a posição que ocupa no imaginário do público e quem realmente deseja ser ele tem levado para as sessões de terapia. O ator, que não tem conseguido jogar as peladas que ama por falta de tempo, mas usa o pilates como aliado para desanuviar a mente e cuidar do corpo, segue a linha batizada de experiência somática.
— Ela leva muito em consideração o corpo. E tem me ajudado a entender a questão da sexualidade, a fazer uma leitura do lugar de galã em que que estive. O que isso me trouxe, o que tem de real disso em mim e o que estou fazendo em função do que os outros esperam de mim, sabe? Quem eu sou dentro disso tudo? — questiona ele, garantindo que a libido continua em alta. - Vai super bem, mas também está mais focada. Durante muito tempo, dispersei muito na conquista. Sempre em busca da parceria ideal, dessa figura que a gente vai idolatrando. Agora, dei uma simplificada.
Equilíbrio na relação
Casado com a diretora Gabriela Gastal desde 2016, ele conta que os dois encontraram o equilíbrio da relação. Que o conforto veio quando cada um achou seu espaço e entendeu que as dificuldades fazem parte. A sintonia está fluindo tão bem eles decidiram trabalhar juntos pela primeira vez. Será na série batizada de "Dezamores", uma adaptação do livro homônimo do carioca Pedro Ayres sobre relações. Será a estreia de Marcos na direção.
— Sempre achei que diretor tem que ser muito culto, e eu não sou esse cara — diz ele, que carrega uma culpa por nunca ter gostado de estudar e por não ter lido tantos livros na vida. — Mas estou precisando experimentar, curioso para ver se sou capaz de contar essa história, que está ligada à questão da comunicação nas relações de amor em geral, de casal, entre amigos, na família...
No quesito amor de pai, Marcos anda numa boa fase com Julia, sua filha de 14 anos, fruto do relacionamento com a diretora Amora Mautner. Conta que tem aprendido a respeitar os desejos e a personalidade dela.
— Como pai, a gente sempre fica querendo moldar, somos muito críticos com as coisas que incomodam. Mas estou atento a ela, vou só podando os exageros, porque tem coisas que uma criança de 14 anos não sabe — enfatiza. — A paternidade mudou minha vida, me fez ter essa conexão mais para dentro, fiquei muito mais sensível. Como me disse a Marina (Silva) uma vez: "Criança a gente cuida de perto, adolescente, de longe". Estou respeitando essa distância, deixando ela ir, mas sempre de olho.
O ator também se prepara para estrear o longa "O barulho da noite", de Eva Pereira, no Festival do Rio.
— É um filme de arte, que aborda assuntos como assédio e pedofilia. Dá bons toques sobre o que acontece nesses rincões do Brasil e não chega na gente. Se uma mulher na cidade tem medo de denunciar, imagina a do interior? Passa a vida toda naquela situação de opressão...
No filme, ele vive mais um trabalhador do campo, papel que parece ter nascido para interpretar.
— Eu me sinto confortável nele. Fui criado convivendo com o Brasil profundo. Minha experiência com comunidades indígenas, quilombolas... Tudo se mistura. O Brasil de que mais gosto é o rural. Não o de agronegócio, PIB e commodities, mas o da simplicidade, da simpatia e da humildade desse trabalhador.
Assim que acabar "Pantanal", Marcos vai gravar a série "A era dos humanos" para o Globoplay. A ideia do projeto é mostrar ao telespectador o está por trás das mudanças climáticas. Falar sobre como tudo na natureza está conectado e em equilíbrio e como as decisões do homem impactaram o planeta. A produção será em Abrolhos, no Pantanal e na Amazônia.
Ele também fará um documentário sobre a floresta, aliás. "Será que o Brasil nunca viu a Amazônia?", será todo filmado de um balão com a proposta de explicar como a Amazônia está ligada a todas as regiões do Brasil.
— Quando a gente fala da Amazônia parece que está fazendo um discurso para fora. Mas o brasileiro não sabe, não entende sua importância. Se não ficarmos atentos, pode que ser esteja passando a nossa era. A natureza se transforma, mas o que fazemos no dia a dia pode acabar com a nossa possibilidade de existir. Se aquecer tudo, a barata vai sobreviver, mas e nós? Vamos viver no ar-condicionado? Mas de onde tiraremos a energia se os rios vão secar?
Primeiro turno indefinido
A questão do meio ambiente sempre foi uma bandeira do ator. Sua fazenda, Vale das Palmeiras, é a maior produtora de laticínios orgânicos do estado do Rio. Também produz hortaliças. Ele enxerga os alimentos como uma "forte ferramenta política". Diz que consumidor tem que chegar no supermercado e dizer: "Isso aqui eu não quero".
— Para que entrar com a soja no Pantanal? Realmente precisa de mais área para produzir soja ou essa é só uma forma de tomar conta, desse domínio territorial pesado que há na indústria do transgênico, que tira o homem do campo para entrar com maquinário pesado — alerta. — A propaganda das grandes empresas brasileiras fala em alimentar o mundo. Mas, peraí, o Brasil está passando fome de novo, o país está faminto! Há um desperdício enorme de alimento. Tem comida, tem dinheiro, mas está tudo pessimamente distribuído. Reclamam que orgânico é caro, mas se alimentando deles, a gente deixa de tomar vários remédios por conta da contaminação de mercúrio, por exemplo.
Mas um dos mais famosos apoiadores de Marina Silva tem esperança de que é possível "virar esse barco". Deseja interromper o "strike que o atual governo está fazendo" ("A morte de Bruno e Dom é simbólica desse mundo de ninguém. Podendo, eles vão matar mesmo"). Se agarra, então, às próximas eleições. Espera que o próximo presidente "reequilibre" o país. Marcos crava o voto em Lula no segundo turno, mas afirma que ainda não sabe que escolha fará no primeiro turno.
— Se chegar na véspera da eleição e eu sentir que ninguém tem chance de derrotar esse presidente, voto no Lula. Ao mesmo tempo, o que o Ciro está propondo? Talvez seja o mais capacitado, mas tem esse lugar de bater na mesa... Não conheço o histórico da Simone Tebet, mas é uma mulher, advogada. Qualquer um será melhor do que esse aí, e a Nova Carta aos Brasileiros (manifesto que circula em defesa da democracia) mostra bem isso. Independente da sua politica, é uma questão de humanidade, de respeitar realmente as diferenças.
O que o ator espera é "um governo de transição".
— Não dá para assumir dizendo que vai mudar tudo porque não vai. É o que a Marina fala sobre tomar cuidado para não ganhar perdendo, porque vendem a ilusão de uma coisa nova. E não é. Sinto falta de humildade desse outro lado, é um momento de reflexão para a oposição. Ninguém tem a solução para o problema. A solução hoje é estancar essa sangria desenfreada e direcionar os orçamentos, fortalecer as instituições — enumera. — Agora, é o momento de irmos para a rua mostrar que estamos juntos. A sociedade civil tem que estar presente. Não adianta esperar um herói que que vai bater na mesa e dizer: "Vou resolver". Não vai. Provavelmente, quem vai entrar já esteve lá, e, por mais que tenha avançado, não resolveu.
Marcos também critica o tratamento dado pelo PT a Marina Silva quando ela pediu para deixar o cargo de Ministra do Meio Ambiente, em 2008, e quando foi adversária de Dilma Rousseff nas eleições de 2014.
— Não sei como a Marina tem casca para aguentar. Foi tudo muito pesado. O jeito que o PT a tratou, o próprio ex-presidente Lula... Ele dizer que ela precisava falar com Deus antes de tomar uma decisão (no momento em que Marina quis deixar o posto de ministra). Criaram essa cara da Marina. Trataram como se fosse vaidade dela, como se ela estivesse carente —afirma. — A impressão que tenho é que não pensam, necessariamente, no que é bom para todo mundo, mas no que é bom para o PT e para o Lula nesse momento. Isso é o que menos importa, tem um jogo muito maior. Os petistas assimilam rápido Geraldo Alckmin, topam o que vem. Tem que discutir e tem que ser cobrado também: "Qual é o projeto de governo?". Não dá para fazerem um acordo incondicional.
Para Marcos, há ainda a necessidade de uma reflexão geral sobre a esquerda.
— Tem que se refletir sobre essa esquerda na América Latina, sobre o que se faz na Venezuela, na Nicarágua... Não dá mais para defender esses governos. Cuba tem que ser cobrada. O incondicional levou a gente até aqui. O que elegeu o atual presidente foi esse radicalismo. E o que vai tirar Bolsonaro é o radicalismo. A gente vai ficar o tempo inteiro escolhendo o menos pior? O que estamos construindo de planejamento de futuro de nação? Não tem. Reeleição também é uma cagada. Ninguém trabalha por quatro anos. Trabalham pensando como conseguem se manter por mais quatro.
'A gente tem que se livrar do machismo ancestral e do racismo estrutural'
Mulheres empoderadas, masculinidade frágil, crítica ao agronegócio, veganismo… “Pantanal” tem dialogado com vários dos temas que estão no centro do debate contemporâneo. E Marcos Palmeira, presente nas duas versões da novela, identifica melhor que ninguém as atualizações da adaptação de Bruno Luperi na trama escrita por Benedito Ruy Barbosa.
No mês passado, o patriarca José Leôncio foi dono de um discurso que repreendeu a homofobia praticada pelos peões contra o mordomo Zaquieu (Silvero Pessoa).
— É um bom exemplo nesse momento de polarização e radicalismo, em que não se aceitam as diferenças. Por mais que tenha sido criado daquele jeito, Leôncio é capaz de fazer a reflexão de “Peraí, o mundo mudou” — observa Marcos. — Tem um lado chato porque toda transformação é chata... Aí, dizem: “Ah, politicamente correto demais”. O fato é que não dá mais para brincar com as questões da sexualidade, do negro... A gente tem que se responsabilizar, se livrar do machismo ancestral e do racismo estrutural.
Também não dá para corroborar com discurso armamentista, acrescenta o ator. Tanto que o texto da cena recente em que Leôncio pede ao filho Jove (Jesuíta Barbosa) que use uma arma para se proteger foi cercado de cuidados:
— Levamos a discussão para outro lado, não faz mais tanto sentido ter essa arma.
Corpo feminino
Outra mudança clara no remake é quanto à exploração do corpo feminino. Se na versão original muitas mulheres tomavam banho de rio nuas, agora, o foco está no sex appeal dos peões. Marcos diz que, em relação a esse aspecto, de forma geral, enxerga retrocesso:
— A gente deu uma encaretada nesse sentido. Quando fizemos a novela há 30 anos, ficávamos realmente nus, homens e mulheres. Tínhamos uma relação mais livre com o corpo.
Zero careta são os bastidores da novela, como é possível perceber nas redes sociais dos atores, que entregam tudo por ali. A decisão sobre o que vai ser postado, muitas vezes, é dividida entre o elenco, que tem ostentado na internet uma sintonia fina.
— É perigoso quando você expõe muito a vida pessoal e depois reclama de invasão da privacidade. Hoje, nós atores somos nossos próprios paparazzi. Tem que haver uma preservação desse ambiente mais íntimo — reflete Marcos.
Quando uns exageram, os outros dão um toque. Quase sempre os atores pedem autorização para os companheiros (que aparecem em fotos ou vídeos) antes de fazer um post:
— As redes são ferramentas de comunicação ricas. Loreto (José) e Dira (Paes) fazem bem essa brincadeira. Eu não tenho muito esse pensamento. Gosto de usar para falar do que estou querendo. Sou antenado com o que está acontecendo. Então, quando vivemos uma crise, não me sinto confortável em me postar feliz. Prefiro não postar nada. Mas esse bastidor aconteceu de verdade. É leve, bonito, trocamos sobre o trabalho uns dos outros. E estamos abertos, ninguém tem nada para esconder.
Nos capítulos futuros, adianta Marcos, José Leôncio finalmente vai explicar por que nunca diz “Eu te amo” para Filó (Dira Paes), sua grande companheira na vida. O ator arrisca uma explicação para essa omissão:
— Zé Leôncio é um homem de muitas perdas. É um cara sozinho, angustiado. Renato (Góes, que viveu o personagem na primeira fase) fez a parte solar. Fui para o lado mais sombrio. Porque Leôncio tem o fantasma do pai, essa coisa que muitas pessoas têm no Brasil, de não poder enterrar seus mortos, de vivenciar aquele luto. Ele ficou com isso amarrado, mas ainda tem chances de se redimir com Filó.
‘Questão humana’
Segundo o ator, “Pantanal” é “uma novela de personagens carentes e inseguros”. E não há ninguém que seja apenas herói ou vilão:
— É todo mundo meio errado. Isso pega o público, porque vai na questão humana. Mas acho que o principal é o resgate da dramaturgia. Tem gente que diz que as novelas estão fadadas ao fracasso, mas, quando se tem uma boa história, as pessoas param para assistir.
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