Vitor Martins sempre enxergou a escrita como uma “saída criativa” para enfrentar questões que o permeiam desde a adolescência. Conhecido por construir tramas familiares elaboradas e tocantes, o autor conseguiu criar uma conexão forte com os leitores, que se reconhecem nas histórias marcadas por muita diversidade. No entanto, não foi sempre que o escritor se sentiu totalmente confortável na construção dos personagens.
Em entrevista exclusiva ao iG Gente, Vitor relembra o receio que teve durante a escrita de “Quinze Dias”, primeiro romance publicado em 2018. “Tenho lembranças de quando eu estava me preparando para começar a escrever ‘Quinze Dias’, eu ainda tinha muito receio de escrever sobre personagens que fossem gays. Tinha muito esse receio porque eu não estava pronto”, analisa.
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“Foi um passo muito grande para mim, de quase que me assumir para o mundo, foi um processo complicado. Durante a adolescência, todas as histórias que eu escrevia sempre eram muito centradas em personagens héteros, porque era o que eu me sentia seguro escrevendo. Porque era o que eu não teria vergonha se alguém lesse. Queria escrever para mostrar para os outros, queria que outras pessoas lessem. Mas eu não queria que as outras pessoas me lessem, eu queria que elas lessem só o livro. Então, para mim, foi muito difícil”, continua.
Martins recorda que a leitura de “Dois Garotos se Beijando”, de David Levithan, foi essencial para trazer a própria autenticidade aos personagens que criava neste período. “Foi um dos primeiros livros que eu li com uma representatividade gay positiva, interessante e que me deixasse inspirado. É um livro super curtinho e mexeu demais comigo. É um livro extremamente bonito”, diz.
De tradutor para traduzido
O contato com o autor norte-americano não termina no estímulo positivo para a escrita de “Quinze Dias”, já que o brasileiro conheceu David na Bienal do Livro de São Paulo de 2018 e teve a obra inspiradora autografada. No mesmo evento, Levithan ainda selecionou livros nacionais para levar aos Estados Unidos e, com ajuda de um editor brasileiro com o qual trabalhava, publicar alguns dos títulos pela Scholastic Press. O romance de estreia de Vitor integrava a seleção e foi traduzido para o inglês.
“No meio desse monte de livros, ‘Quinze Dias’ estava ali escondido no meio e eu não sabia de nada. Alguns anos depois, descobri que esse editor brasileiro, que morava lá, acabou lendo o livro, teve interesse e decidiu publicar. ‘Quinze Dias’ foi publicado nos Estados Unidos, depois em outros países e foi crescendo. Foi tudo tão o acaso do acaso, uma obra do destino”, explica o autor, que ainda vê David como uma “inspiração muito grande”.
Martins destaca que já recebeu mensagens de leitores estrangeiros relatando como tiveram o primeiro contato com uma obra traduzida a partir de “Quinze Dias”. “Quando a gente fala principalmente de literatura jovem adulta comercial, feita para vender em livraria, é muito difícil você ter livros traduzidos de outro idioma chegando nos Estados Unidos para esse público e dentro desse mercado. Eles consomem muito o que é feito por eles”, expressa.
“É muito engraçado você estar presente em um país onde as pessoas falam que esse livro foi o primeiro livro traduzido que leu na vida, sendo que nós brasileiros, geralmente, o primeiro livro que a gente lê na nossa vida é traduzido, vem de fora”, reflete o escritor, que já lançou outros títulos desde então, como “Um milhão de finais felizes” (2019) e “Se a casa 8 falasse” (2021).
Vitor também atua como tradutor e celebra a possibilidade de colaborar na tradução de livros mais diversos para o cenário nacional: “Traduzir para dentro é outra história completamente diferente. Principalmente ajudando o mercado editorial brasileiro a trazer vozes mais diversas em termos de histórias e personagens que sejam mais diversos. É muito legal estar trabalhando nesses projetos”.
O profissional ainda relata que enxerga uma evolução na própria escrita por conta do trabalho como tradutor. “É uma imersão total, porque você tem que estar ali presente em cada palavra daquele livro. É ler vezes mil, você não está só lendo ou relendo. Você está lendo e cada palavra conta, cada palavra é importante, cada frase você tem que estar ali. E isso tem me feito crescer enquanto escritor, porque me apresenta uma possibilidade de analisar histórias de uma maneira tão legal”, afirma.
“Não é só você traduzir literalmente uma frase, um texto, um parágrafo, um livro inteiro. Você precisa traduzir uma emoção, principalmente quando falamos de literatura de ficção. É extremamente importante que você traduza aquela emoção, de que aquele livro é um livro bonito, que me fez chorar ou que me fez gargalhar. Se ele não é bem traduzido, em outro idioma ele não vai te fazer chorar, gargalhar ou sentir”, expõe.
Trocas importantes na Bienal do Livro
Abordando experiências que tocam no coração, Vitor Martins está com altas expectativas para a 26ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, que ocorre entre os dias 2 e 10 de julho, no Expo Center Norte. Ao lado de Iris Figueiredo e Ilustralu, o escritor participará do debate sobre “Famílias e Amizades na Literatura Jovem” no primeiro dia do evento, às 17h30, na Arena Cultural.
O autor não esconde a empolgação com a possibilidade de conhecer presencialmente os leitores no evento. “Eu diria que está no top 3 de partes favoritas de publicar um livro assim. É uma experiência muito especial [...] É diferente estar lá, poder estar frente a frente, ouvir as histórias, olhando no olho dos leitores, isso é muito interessante”, pontua.
Em ocasiões como esta, Martins tem a possibilidade de conhecer os novos significados que os leitores atribuem aos livros que escreveu, algo que ele ressalta ter muito “apego”. “Costumo dizer que ‘Quinze Dias’ foi o livro que eu escrevi para mim, ‘Um milhão de finais felizes’ eu escrevi para os leitores e ‘Se a casa 8 falasse’ escrevi para o meu namorado. Então sempre existem esses significados atrelados a cada história que eu dou, mas o que eu acho mais interessante são os significados que os leitores vão atribuindo”, analisa.
“Isso é uma experiência que todo mundo passa. Seja com um livro, com um filme, com uma música. Existem os nossos significados atrelados a ela. Existe aquela história que a gente vê, lê e ouve e a gente lembra de um determinado momento da nossa vida, a gente lembra de uma pessoa. Mas a pessoa que criou aquela história nem sabe que é a gente, nem sabe quem é essa pessoa, nem sabe qual é a nossa história. Acho que o mais legal dos livros é isso, essa oportunidade que a gente tem de atribuir os nossos significados a coisas que muitas vezes nem foram feitas para a gente”, segue refletindo.
Vitor compara tal experiência com pontos turísticos ao redor do mundo onde pessoas deixam cadeados: “Você olha de longe e parece uma obra de arte feita de um monte de pedacinhos [...], mas existem esses pedacinhos que as outras pessoas vão colocando e significados que as pessoas vão atribuindo. É muito legal estar em eventos onde eu tenho a possibilidade dar um passo para trás assim me olhar de longe essa coisa toda mais completa”.
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O autor ainda defende a importância de debater questões tão importantes como família e amizade diante de um público tão diverso. “Por ser um evento tão grande, o tipo de público da Bienal é muito vasto, então, quando se entra em um estande ou fica parado em um corredor cinco minutos, você vai ver muitos tipos de frequentadores de Bienal [...] Você encontra muitas pessoas diferentes, mas existem certas experiências que acabam sendo muito universais”, segue.
Martins ainda defende o tema o qual debaterá na programação oficial do evento: “Pode parecer um tema muito amplo e vago, mas é um tema tão universal, principalmente quando a gente aplica em personagens LGBTs e começa a debater. A gente vê como é importante falar disso para que as pessoas possam se sentir vistas, notadas ali no meio daquele monte de gente”, finaliza.