“Paisagem da Janela” é a música que marcou o relacionamento de meus pais antes mesmo de eles colocarem um rótulo para tal. O namoro não aconteceria logo de cara nos anos 1980, mas a faixa lançada quase uma década antes no “Clube da Esquina” seria lembrada para sempre por minha mãe como parte de um dos primeiros presentes que ela ganhou de meu pai: um LP com performances ao vivo de Milton Nascimento. A canção estaria nas raízes daquilo que, anos depois, daria início a um casamento que completa 30 anos em 2022.
As músicas do aclamado projeto de 1972 marcaram não só a trajetória de meus pais, como foram parte da trilha sonora de toda uma geração que cresceu na ditadura militar. E ainda mais: o álbum duplo do cantor apelidado como “Bituca” e do mineiro Lô Borges continua sendo um dos maiores marcos da cultura e música brasileira até hoje, exatos 50 anos após o lançamento.
O som que falava com o coração de uma geração
Apesar de toda a grandeza por trás de um único nome, o Clube da Esquina não nasceu com a pretensão de se tornar um movimento, assim como explica Paulo Thiago de Mello no livro “Clube da Esquina: Milton Nascimento e Lô Borges”. Na verdade, o projeto surgiu a partir de uma amizade formada nos anos 1960, entre Milton e os irmãos Borges - Marilton, Márcio e Lô. O companheirismo dos amigos foi o pontapé inicial do projeto, que já chegava ao público impactando a juventude da época.
Em entrevista ao iG Gente, o autor da obra explica porque escolheu contar a história do Clube no livro que integra a coleção “O livro do disco”, da editora Cobogó: “Escolhi o Clube da Esquina porque foi um disco importante para mim pessoalmente, marcando minha transição da infância para a adolescência (tinha 12 anos quando foi lançado)”.
O jornalista e antropólogo teve um primeiro contato com o Clube da Esquina antes de o álbum ser comercializado, por conta de um familiar que trabalhava em uma loja de discos. “Mas antes mesmo de ouvir o disco, eu intuitivamente já esperava por aquele som, que falava ao coração de minha geração. Eu entendia todas aquelas referências subjetivas e mergulhava na sonoridade rural e simultaneamente global do disco (‘Sou do mundo, sou Minas Gerais’)”, compartilha.
Ainda que o nome do lançamento de 1972 faça referência ao cruzamento das ruas Paraisópolis e Divinópolis, localizado no bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte, a esquina em questão apresenta um significado muito mais subjetivo do que literal. “O Clube é uma ideia, um Brasil onírico, uma esquina cuja referência é física, porém mais ainda uma essência, a terceira margem do rio”, afirma o jornalista e antropólogo.
Nesta intersecção, ao mesmo tempo subjetiva e mineira, um grupo formado por Milton, os irmãos Borges e vários outros grandes artistas inovou ao criar um álbum conceitual. A proposta foi algo diferente do que era observado no mercado da época e chamou a atenção, principalmente, pela inovação na sonoridade.
"Em termos de sonoridade, o disco foi inovador por reunir músicos e letristas muito jovens para criar um som inovador, misturando a música do interior do Brasil, com suas melodias simples e marcantes, a uma harmonia sofisticada, que trazia elementos do jazz fusion americano (sobretudo Wayne Shorter e Herbie Hancock), da bossa nova, e, com chegada de Lô Borges e Beto Guedes, a influência do rock psicodélico britânico, sobretudo os Beatles de ‘Sgt. Peppers’ [...] Era uma música que tinha a ver menos com o som dos centros culturais do litoral (Salvador, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo)"
Leia Também
Ele segue apontando as influências de nomes que auxiliaram nesta criação autêntica: “Nas letras, Bituca e Márcio Borges aplicaram uma poesia cifrada para escapar da censura, em que prevalecia a metáfora da estrada (viagem, trem etc.). Ao mesmo tempo, Ronaldo Bastos e Fernando Brant trouxeram elementos da poesia marginal, sobretudo a vertente carioca”.
Leia Também
Um sopro de esperança diante da asfixia da ditadura
As músicas do Clube da Esquina foram concebidas já vigiadas de perto pelos censores da ditadura militar brasileira. O álbum chegou ao público em um contexto de repressão intensa, durante o governo Emílio Médici (1969-1974). O projeto não deixa de retratar entre seus temas centrais o esforço para “sobreviver ou superar a asfixia opressiva” da ditadura, assim como é dito no livro de Paulo.
Mesmo reprimidos, os artistas do Clube seguiram produzindo e enfrentaram desafios técnicos que ocorriam desde a gravação até a distribuição. Ainda na obra, o jornalista destaca o paradoxo do panorama em que o álbum foi lançado: “Num momento em que quase tudo era censurado ou proibido, a inovação artística e comportamental explodia, sem limites”.
“O disco e sua mensagem sonora e poesia lírica marca um sopro de esperança, apesar da conjuntura de ditadura. Era como se aquele som fosse uma promessa de luz no fim do túnel, como de certa forma foi”, aponta o jornalista ao iG, que ainda que cita a conjuntura histórica deu ao álbum “um tom de vida e morte”.
“Só quem viveu a ditadura pode entender completamente. As novas gerações podem imaginar, mas o terror que rolava naquela época tornava tudo urgente, sobretudo nossos afetos. Não é à toa que Milton Nascimento começa a compor após assistir várias sessões seguidas de ‘Jules et Jim’, o filme de [François] Truffaut. O amor que aparece no filme e no disco estava à flor da pele como remédio contra a asfixia daqueles dias”, conta ao portal.
Experiência emocional que não se explica racionalmente
Se “Paisagem da Janela” tem até hoje um significado especial para a trajetória de meus pais, é visível como o Clube da Esquina também conseguiu tocar uma geração a partir deste aspecto mais afetivo. Paulo Thiago de Mello destaca a importância do disco como um instrumento de conexão emocional com as pessoas.
“Esse é o aspecto emocional, afetivo e psicológico que torna toda essa qualidade musical e lírica de sua poesia uma experiência misteriosamente grandiosa e que não se explica racionalmente. É uma sensação, uma intuição. Os elementos racionais aparecem aqui e ali, mas o todo é maior que as partes”
O autor ainda compartilha histórias de conhecidos tocados pelo livro que escreveu sobre a obra de Bituca e Lô: “Dois escritores, Marcelo Moutinho e Fernando Molica, ambos nascidos depois do lançamento do disco, mas que se sentem visceralmente ligados com aquele som, escreveram sobre o impacto emocional da leitura do livro. Molica chegou a exagerar, afirmando que se pegou chorando no Metrô. Nem tanto por mérito do texto, mas pelo conteúdo que toca a todos”.
“De qualquer modo, é surpreendente que o Clube da Esquina continue emocionando de forma impactante as novas gerações, mesmo quem não viveu aquela época”, completa. Mas como um projeto de 50 anos atrás segue com uma memória tão viva e celebrada até hoje? Paulo acredita que o motivo está no fato de que o álbum “atravessa o tempo”.
“Márcio Borges diz que o disco só poderia existir naquela conjuntura específica e casual que reuniu aqueles jovens em torno do talento de Bituca e naquele momento específico da história. Talvez seja isso que torne o Clube um disco único e influente, independentemente da geração que o escuta. Até porque não se fizeram no Brasil muitos discos conceituais, em que se ouve não só um punhado de canções, mas uma espécie de sinfonia em que as músicas estão ligadas. E o que liga as canções do disco não é uma coisa racional, mas afetivamente emocional. Penso que é isso que atravessa o tempo”.
A turnê “Clube da Esquina”, iniciada em 2019, é um exemplo de como o fator emocional impacta as pessoas ainda atualmente. “A conexão emocional é marcante. Basta ver a turnê recente que Bituca e Lô fizeram e, agora, na celebração dos 50 anos do disco. Sempre me surpreende a quantidade de jovens que sentem essa conexão emocional, talvez a mesma que Milton sentiu vendo a trama de amor e amizade do filme de Truffaut”, conclui.