O gênero teatral que mais cresceu nos últimos anos pode estar ameaçado, tudo por conta de algumas reformulações que a Lei de Incentivo à Cultura , também conhecida como Lei Rouanet, vem sofrendo. Desde 2001, São Paulo se tornou palco de grandes produções de musicais – sendo muitos espetáculos importados da Broadway. O teatro musical expandiu, virou um negócio lucrativo, movimentou a economia, mas pode recuar sem o incentivo do governo. Agora, a principal pergunta é: como ficará essa situação em 2020?
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A diminuição da produção de espetáculos de grande porte tende a reduzir – ou até deixar de existir – porque o valor captado através da lei se tornou fundamental para a montagem desses musicais. O problema é que muitos acreditam que esse valor destinado à cultura é tirado dos cofres do governo, entretanto, segundo uma recente pesquisa divulgada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), esses espetáculos devolvem praticamente o dobro para a economia – sem considerar a fomentação cultural que geram.
Para que tudo fique claro, é preciso entender como funciona a Lei de Incentivo à Cultura, o que é preciso para que esses musicais sejam produzidos e quais os impactos na economia. Parece complicado, mas o iG Gente explica tudo de formas simples.
Como funciona a Lei de Incentivo à Cultura?
Conforme descrito no site oficial do governo, a lei é a “principal ferramenta de fomento à Cultura do Brasil” e “contribui para que milhares de projetos culturais aconteçam”. Para isso, os produtores inscrevem seus projetos e, se aprovado, ele pode captar recursos com empresas e pessoas físicas que acabam atuando como patrocinadores do espetáculo.
A vantagem para quem apoia é que esse valor é abatido do Imposto de Renda. Pessoas físicas podem destinar até 6% do valor total para incentivar a cultura no Brasil e empresas 4%. Pensando no todo, o dinheiro que o governo deixa de receber não chega a 1% do total de impostos arrecadados.
Quando o projeto consegue sair do papel, o produtor que captou o valor precisa atender algumas exigências. “Em toda sessão, 10% dos ingressos é dado gratuitamente, o logo do Ministério da Cidadania está presente nas propagandas e esse incentivo é citado no final de todo espetáculo. Além disso, no mínimo 20% dos ingressos são de meia entrada, de 10 a 12% são de direitos autorais e 10% vai para o patrocinador ”, explica Renata Borges, da Touché Entretenimento, responsável por espetáculos como “Peter Pan”, “Cinderella” e “Madagascar”.
Mudança na Lei e suas consequências
Em abril de 2019, uma reformulação na lei pegou os produtores de surpresa. O limite de captação baixou de R$ 60 milhões para R$ 1 milhão por projeto. Isso significa que a mesma empresa poderia apresentar várias propostas diferentes que somadas não deveriam ultrapassar R$ 10 milhões por ano. Na época, o ministro da cidadania Osmar Terra justificou a decisão.
“Com isso, vamos enfrentar a concentração de recursos nas mãos de poucos. Com o mesmo dinheiro, mas melhor distribuído, vamos ter muito mais atividades culturais e artistas apoiados, dando oportunidade para os novos talentos”, relatou.
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Vitor Rocha é um jovem escritor e compositor responsável pelos espetáculos originais “Se Essa Lua Fosse Minha” e “Cargas D'Água – Um Musical de Bolso” – que, inclusive, ganhou montagens na Broadway e em Londres. Seguindo o discurso de Osmar Terra, ele seria um dos beneficiados com a mudança na lei, já que é o próprio Vitor que produz seus espetáculos e sente na pele a falta de um patrocinador, porém ele não concordou com essa primeira mudança.
“Acho bem triste e retrógrado que os números gerados pelo teatro musical todo ano no Brasil sejam simplesmente ignorados. Os espetáculos musicais essencialmente nacionais que temos hoje são todos de médio e pequeno porte e talvez por isso não tenham que se readaptar tanto quanto as grandes franquias internacionais. Mas é de se questionar que já podamos no berço a possibilidade de que os musicais essencialmente nacionais ganhem grandes produções ou se tornem franquias internacionais”, pontuou ao iG .
União necessária
Diante de uma possível crise no setor, foi criada a Sociedade Brasileira de Teatro Musical. “A gente espera unir a classe em prol de um objetivo comum que é manter a perpetuação do teatro musical, a cadeia produtiva, para que os musicais possam continuar existindo”, explicou a presidente da instituição, Stephanie Mayorkis. Para mostrar a importância que o teatro musical ganhou nos últimos anos, a Sociedade divulgou uma pesquisa feita pela FGV que indica que esses espetáculos movimentaram R$ 1 bilhão na economia em 2018.
Sérgio Sá Leitão, atual secretário estadual de Cultura e Economia Criativa de São Paulo, chegou a se posicionar e dizer que estava ao lado dos produtores. “São Paulo, hoje, em termo de oferta de musicais só perde para Londres e Nova York. Os governos (federal, estadual e municipal) abrem mão de R$ 68 milhões de reais para que esses musicais todos possam acontecer por meio da Lei de Incentivo e só de impostos esses mesmos entes públicos arrecadam R$ 131 milhões. Os musicais são muito importantes para a cidade e o estado, são parte fundamental da nossa produção cultural e artística.”
A conta não fecha
A quantia de R$ 1 milhão para montar um espetáculo pode até parecer muito, mas, quando se trata de uma grande produção, esse valor é baixíssimo. Renata Borges explica que, mesmo no antigo formato, a Lei de Incentivo à Cultura não cobria o valor total de um musical. “Nossa conta não fecha. Em ‘Peter Pan’ e ‘Cinderella’ eu tive que tirar dinheiro da bilheteria para pagar as contas. Com R$ 1 milhão eu não faço um musical, só o cenário do ‘Peter Pan’ foi esse valor e tinha o voo que deixou mais caro”.
O musical “Peter Pan”, por exemplo, custou no total R$ 15 milhões e captou pela lei R$ 9,6 milhões. Só esse espetáculo gerou 120 empregos diretos e cerca de 500 empregos indiretos. Os espetáculos da IMM e EGG Entretenimento – “My Fair Lady”, “Cantando na Chuva”, “A Pequena Sereia” e “Sunset Boulevard” – geraram juntos mais de 2,1 mil empregos no total (diretos e indiretos), além disso, foram distribuídos 65 mil ingressos, contemplando 388 instituições, e foram disponibilizados 88 mil ingressos a preços populares.
Mudança deve dar um alívio
Após a movimentação do setor para mostrar a importância que dos musicais na economia e na fomentação cultural – principalmente em São Paulo – o secretário Especial de Cultura, Roberto Alvim, anunciou em dezembro de 2019, durante um almoço com produtores e demais representantes da cultura, que os projetos de teatro musical poderão captar até R$ 10 milhões através da Lei de Incentivo à Cultura, ou seja, não há mais a limitação de R$ 1 milhão por projeto.
“O benefício é ter a liberdade. O teto de R$ 10 milhões é muito bom porque a indústria criativa continua a fomentar, gerar emprego, os musicais vão continuar sendo produzidos com excelência. Foi um avanço, estou muito feliz e aliviada da gente poder dar continuidade a um trabalho lindo que começou há 20 anos”, comentou Renata Borges, que este ano vai trabalhar com “ Something Rotten ” (“Algo Acontece na Dinamarca” – título provisório), que será traduzido por Miguel Falabella, e “Carousel”, que está em fase de captação.
O aumento de R$ 10 milhões por projeto foi um belo avanço, mas ainda pode prejudicar as grandes franquias, como “O Fantasma da Ópera”, que captou pela lei R$ 24 milhões. O espetáculo, que seguiu os moldes da Broadway, ficou cerca de um ano e meio em cartaz e venceu o Prêmio Bibi Ferreira na categoria Melhor Musical . Para 2020, já foram anunciadas as produções “ Chicago ”, “ A Fantástica Fábrica de Chocolate ” e “ Donna Summer Musical ”.