O sertão baiano, a favela carioca e o sul do País são alguns dos lugares que serviram de cenário para filmes brasileiros indicados ao Oscar. O Rio de Janeiro e o Nordeste são os principais locais escolhidos para as produções nacionais, deixando outros estados escondidos. Por isso, quem não está familiarizado com a periferia de Minas Gerais pode estranhar o começo de “No Coração do Mundo”.
A sensação passa rápido, porém, e a voz do MC Papo avisando que “Contagem é o motherf*cking Texas” acompanhado de imagens da região metropolitana de Belo Horizonte logo estabelecem o tom e cenário do filme .
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Gabriel Martins, que dirige “No Coração do Mundo” ao lado de Maurílio Martins (que apesar do sobrenome não tem parentesco) conta que a escolha do cenário não foi intencional, mas sim uma consequência: “nós somos uma produtora que está fazendo 10 anos e a grande maioria (dos filmes) foi filmada lá porque o cenário é interessante e está perto de onde a gente vive”, explica.
Para ele, o cinema nacional carece de “mineiridade”. A região não tem uma filmografia tão extensa quanto outras, mas se depender dos diretores, isso vai mudar. Apesar de “No Coração” ser a produção mais recente na região, a dupla criou a produtora Filmes de Plástico há 10 anos, produzindo cerca de 20 filmes, entre curtas e longas.
Em 2018, outro título da produtora, “Temporada” (disponível na Netflix), chamou a atenção no cenário nacional, especialmente pela atuação de Grace Passô. A atriz aparece também na produção de Gabriel e Maurílio como Selma, uma mulher na batalha por uma vida melhor, e com uma boa ideia para conseguir dinheiro: roubar uma casa dentro de um condomínio de luxo. O crime, de acordo com Gabriel, é inspirado em um similar lido nos jornais.
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Muitos filmes em um só
Em tese, “ No Coração do Mundo ” é sobre Marcos (Leo Pyrata), que embarca na ideia de Selma do roubo, e pede ajuda para a namorada Ana (Kelly Crifer). Na prática, o filme desmembra os dramas pessoais desses personagens e conta muitas histórias em uma só, sem nunca se perder.
Gabriel explica que os dois tinham receio de que a edição final “quisesse ser muitas coisas e não fosse nenhuma”. Por isso eles passaram mais de um ano na montagem e edição. “Não foi um processo fácil, tivemos que desapegar de muita coisa”, revela o diretor.
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Para ele, a única forma de realmente conseguir desenvolver a história sem que se perdesse era trabalhando os personagens com cuidado. Para isso, eles contaram com o apoio de um elenco dedicado e que oferece atuações brilhantes.
Pyrata e Kelly já haviam vivido os personagens no curta “Contagem”, de 2010, e desenvolveram os protagonistas com sucesso. Passô, revelação do cinema nos últimos anos, cria uma Selma corajosa e sonhadora (dona de um belo monólogo sobre o que é o coração do mundo) e até Karine Teles, que faz uma pequena participação do começo, diverte como uma locutora de carro de som.
Gabriel conta que, apesar dos atores serem os mesmos do curta, muita coisa mudou. “Seria legal manter a essência, mas não precisava prestar contas ao curta. Aí começamos um desenvolvimento mais profundo, com colaboração grande do elenco”, explica.
Passô, por exemplo, não estava nos planos iniciais, já que sua personagem era um homem. Durante uma das versões do roteiro eles decidiram fazer um exercício de mudar os gêneros, e foi assim que Selma nasceu. A atriz, conhecida no teatro mineiro, foi indicada por um amigo. “Temporada”, que a colocou no radar nacional, foi gravado depois de “Coração”, mesmo sendo lançado antes.
Outra boa surpresa é MC Carol , funkeira carioca que faz sua estreia como atriz no longa. “Pensamos que seria genial ter essa figura que não é daqui, contrastar com a figura do Pyrata”, explica Gabriel, que era fã da funkeira e sabia que ela tinha o sonho de fazer um filme. “É um sonho realizado, foi difícil decorar as falas, mas os diretores me deixaram muito à vontade. Além disso, eu estava com muita vontade (de fazer acontecer)”, conta Carol.
No filme ela faz Brenda Lee, amiga de infância de Marcos, e a quem ele recorre em momentos de dificuldade. Curiosamente, seu papel também foi pensado para um homem inicialmente. As ótimas performances – de Carol e todo o elenco- ficam na conta da sintonizada direção de Gabriel e Maurílio, que já trabalham juntos há anos e levaram a outro nível o conceito de “a quatro mãos”.
Eles dirigem o terceiro filme juntos, mas o primeiro longa. Além disso, trabalham em equipe com outros colaboradores e sócios da produtora mineira que eles fundaram. “A gente dirigiu atores juntos, pensou movimento de câmera juntos, montou juntos”, fala Gabriel sobre a cumplicidade no desenvolvimento da produção.
Contagem é o Texas
“Aqui é roça grande, pistola na cintura / Os cowboy de bege, pilotando viatura” , diz um trecho de BH é o Texas . A música, para Gabriel, sintetiza parte do que o filme gostaria de mostrar: “A música parece com o filme – não que o filme seja irônico, mas essa ideia de pensar em Minas como um grande faroeste é uma fabulação que a gente flerta em ‘No Coração do Mundo’”, conta o diretor.
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As melhores partes da região, sejam elas doces ou brutas, não escapam ao olhar de Gabriel e Maurílio. Se depender dos dois e de filmes como “No Coração do Mundo”, logo todo o Brasil vai estar de olho no cinema mineiro.