Um dos maiores especialistas em Cinema Novo e Glauber Rocha, o crítico Ismail Xavier não consegue imaginar o que passou pela cabeça do público da 19ª Flip ao assistir à exibição de “Deus e o diabo na terra do sol”, anteontem à noite, no telão do auditório improvisado na Praça da Matriz.
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O filme de 1964, que dialoga diretamente com “ Os sertões ” (1902) de Euclides da Cunha , autor homenageado desta edição do evento , também é um dos pontos centrais de “Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome”, escrito por Ismail em 1983 e relançado no evento pela Editora 34. A obra foi importante ao romper com uma visão excessivamente ideológica, que vigorava até então sobre os filmes do cineasta baiano, preferindo se concentrar na sua linguagem formal.
Por isso, a sessão aberta de “Deus e o diabo” ao público em Paraty , incluindo muitos jovens que assistiram ao filme pela primeira vez, serviu como uma introdução à conversa que reunirá hoje Ismail e o cineasta português Miguel Gomes, que prepara um filme sobre “Os sertões”. Marcada para este sábado, ao meio-dia, a mesa buscará relações entre a obra-prima de Euclides e o cinema.
"Minha experiência mostrando 'Deus e o diabo' para jovens de 20 anos é que sempre há um impacto, seja nos anos 1980, nos anos 1990", diz Ismail, 72 anos, criador do termo “estética da fome”. "O Glauber tem esse poder de síntese: este é o filme que dá uma visão ampla da experiência do Brasil."
Gênios trabalhando
Glauber foi um leitor de Euclides — chegou a escrever, em 1972, um prefácio para uma edição cubana do livro. Para Ismail, “Deus e o diabo” é um filme assombrado por “Os Sertões”. O compositor da trilha, Sérgio Ricardo, tirou de uma frase de Antonio Conselheiro o refrão da música que pontua a narração, substituindo “O Sertão vai virar praia” por “vai virar mar” para melhor encaixar na música.
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As duas obras-primas se convergem, acredita o crítico , pelo temperamento dos seus autores. Ambos tem dramaticidade, criatividade, mas também a complexidade, já que trazem contradições internas para a representação histórica.
Euclides, por exemplo, inicia seu projeto pelo viés positivista em que foi educado. Chega em Canudos acreditando que iria encontrar um grupo de “inferiores”, mas se surpreende com a tenacidade do sertanejo.
"Ao longo do livro, Euclides vai compondo o massacre e a injustiça. São movimentos que partem de uma postura de indignação. E isso está em Glauber também, com sua criatividade avassaladora", diz Ismail.
País do futuro
Uma das teses de “Sertão mar” é que os filmes de Glauber trabalham com a ideia de um país que nunca é formado, um projeto nacional eternamente interrompido. “Deus e o diabo”, por exemplo, é construído seguindo uma “lógica da profecia”.
Mas a visão de Conselheiro, de que o Sertão viraria mar, está muito longe de se concretizar. Pelo contrário. Ao final do filme, enquanto dois personagens avançam rumo a um horizonte desconhecido, a câmera avança quilômetros e só então corta para a imagem do oceano.
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"Entre o mar e os personagens, há um grande caminho a ser feito", observa Ismail. "É como se ele não chegasse nunca, e, quando chega, ele é jogado para os olhos do espectador, para a nossa percepção."