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Chuvosa e enfeitada para a festa de São Pedro, Recife inaugurou na sexta (28) a primeira individual de Adriana Varejão realizada na cidade. Para este contato inicial com o já vasto percurso da artista carioca, a curadora Luisa Duarte trabalha com a espinha dorsal de sua operação artística desde os anos 1990: o vínculo canibal com o barroco brasileiro e sua retórica persuasiva.

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Adriana Varejão
Reprodução/Instagram
Adriana Varejão

“Se o método rendeu obras e discursos suntuosos a favor da narrativa cristã do projeto de colonização europeu, a retórica canibal de Varejão se apresenta como um contraprograma”, aponta Duarte no texto curatorial. Sobre as cerca de 25 obras expostas no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam) paira um paradoxo que oscila entre aquilo que se consome como história e aquilo que não pode mais ser tragado como tal.

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Reprodução

Filho Bastardo: Cena de Interior (1995) de Adriana Varejão

A grande marca da exposição é a ferida (histórica), que irrompe da superfície da tela com violência em obras como “Parede com incisões à la Fontana” (2000) e “Língua com Padrão Sinuoso” (1998). Abrindo a exposição, “Mapa de Lopo Homem II” (1992-2004) traz uma ferida exposta: nessa releitura do planisfério feito pelo cartógrafo português em 1519, o continente africano sangra.

Na sequência, são apresentados panoramas e paisagens que informam o espectador sobre os cenários onde se passam as histórias contadas por Adriana Varejão: de Macau a Vila Rica. Aqui está uma obra seminal de sua crítica decolonial, “Proposta para uma catequese – Parte I díptico: Morte e esquartejamento” (1993). A pintura se apropria de cacos de cenas narradas pela azulejaria de igrejas barrocas de Salvador  , Recife e Olinda, e de fragmentos de gravuras de Theodore de Bry sobre canibalismo no Brasil colônia.

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Proposta para uma Catequese – Parte I – Díptico Morte e Esquartejamento (1993), de Adriana Varejão
Eduardo Ortega
Proposta para uma Catequese – Parte I – Díptico Morte e Esquartejamento (1993), de Adriana Varejão

Se Bry pinta os nativos brasileiros como selvagens que devoram por prazer, Varejão reconfigura a história, aproximando a narrativa cristã da antropofagia, em fragmentos originários de endereços diferentes: Cristo no altar de um ritual canibal e a frase em latim do Evangelho de São João: “O que come a minha carne e bebe o meu sangue, esse fica em mim, e eu nele”.

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Pólvora

Parede com incisões à la Fontana (2000)%2C de Adriana Varejão
Eduardo Ortega

Parede com incisões à la Fontana (2000), de Adriana Varejão

Visitada por historiadores como Lilia Schwartz, a obra de Varejão é vinculada hoje aos estudos decoloniais – vertente teórica insipiente nos anos 1990, quando a artista começou a depurar sua critica. Com a inversão da lógica do discurso colonizador, essa critica pode ser pólvora. Isso é explícito em “Filho bastardo: cena de interior” (1992-95), que não está na exposição, mas representa coitos de padres e senhores de engenho com mulheres negras – colocando, no papel do bárbaro, o colonizador que violenta.

“Quando você muda a perspectiva, muda a história”, diz Adriana a seLecT . “A história é feita sempre a partir de um ponto de vista sobre o outro. Na medida em que você incorpora outras visões, tudo se inverte. São esses processos que esse trabalho revela, mais do que uma culpabilização do europeu. Ele fala de encontros, às vezes violentos”, pondera.

Incontornável, porém, é indagar por que no Brasil uma cena de zoofilia teve poder de gerar mais polêmica (no caso da censura à exposição “Queermuseu”, em Porto Alegre, 2017) do que uma cena de estupro. “Se criou um factoide ali. Não acredito que a polemica saiu da imagem do trabalho, mas veio através de um discurso que usou aquela imagem, e outras, pra se construir”, diz ela. “No campo da ficção não se cometem crimes”.

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Fomento

Língua com Padrão Sinuoso (1998)%2C de Adriana Varejão
Eduardo Ortega

Língua com Padrão Sinuoso (1998), de Adriana Varejão

A exposição “Por uma retórica canibal” passou pelo MAM Bahia, em Salvador, e é fruto de um projeto da galeria Almeida e Dale de levar a importante produção artística contemporânea para cidades fora do eixo Rio-São Paulo, fomentando o interesse pela arte, a formação de público e o desenvolvimento de cenas locais. “Essa é uma escolha pessoal, em um momento de falência das instituições brasileiras”, diz Varejão. “A exposição tem um pouco esse caráter retroativo porque essas regiões nunca tinham tido uma exposição minha”.

Importante salientar que todas as obras da exposição pertencem a coleções particulares brasileiras, formando, portanto, uma ocasião importante para visualizar o conjunto. Paisagem de Macau a Vila Rica (1992), por exemplo, não era mostrada desde os anos 1990, pois estava em posse de um colecionador que recusava seu empréstimo.

O projeto “Por uma retórica canibal” nasceu em 2014, durante um almoço entre a artista e os galeristas Antonio Almeida e Carlos Dale, em Fortaleza, na ocasião da exposição “Pele do Tempo”, na Fundação Edson Queiróz – esta sim a primeira individual jamais realizada por Varejão no Nordeste.

“O intuito é formar redes com colecionadores, galeristas e poder público locais, a fim de facilitar outras ações e instaurar ciclos sazonais e calendários anuais de projetos”, diz Antonio Almeida. A Secretaria de Cultura de Pernambuco já manifestou interesse em fazer uma parceria para um projeto com os galeristas em 2020, quando a exposição Por uma Retórica Canibal deve acontecer em Goiania, Cuiabá, Curitiba e Belém.

No segundo semestre deste ano, Adriana Varejão realiza uma individual Museu Tamayo, no México, e faz a significativa declaração: “Quero ser chamada de artista latino-americana”.

Serviço
Adriana Varejão – Por Uma Retórica Canibal
Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães, MAMAM
Rua da Aurora, 265 – Recife
até 8/9/2019
blogmamam.wordpress.com

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