Personagens femininos dominaram as atenções da programação oficial desta segunda (20) do 72º Festival de Cannes. Depois de um fim de semana marcado por filmes sobre gangsters romenos e mafiosos chineses de inspiração noir, a competição deste ano pela Palma de Ouro recebeu a estreia de “Portrait of a Lady on Fire”, de Céline Sciamma, ambientado no século XVIII e protagonizado por mulheres de diferentes estratos sociais.
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O longa-metragem é um dos quatro títulos em competição pela Palma de Ouro em Cannes dirigido por realizadoras mulheres – os outros são “Atlantique”, de Mati Diop; “Little Joe”, de Jessica Hausner; e “Sybil”, de Justine Triet.
Autora de “Lírios d’Água”, exibido na mostra paralela “Um Certo Olhar”, de 2007, e de outras produções que exploram o território da representação de gênero nos dias de hoje (“Tomboy”, de 2011; e “Garotas”, de 2014), a realizadora francesa volta ao festival francês com sua primeira investigação de época.
“ Portrait of a Lady on Fire ” descreve a relação de uma pintora, cujo trabalho é menosprezado apenas por ser mulher, com a modelo de seu próximo projeto comissionado, uma jovem aristocrata que saiu do convento para casar.
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Os homens são presenças quase inexistentes na trama. Marianne (Noémie Merlant) chega a uma ilha da Bretanha para pintar o quadro de Heloïse (Adèle Haenel, de “A Garota Desconhecida”, dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne).
A tarefa tem que ser cumprida discretamente, em segredo, porque a jovem não aceita a ideia de um casamento imposto pela mãe (Valeria Golino) e recusa-se a posar para pintores homens. Há também Sophie (Luàna Bajrami), a solitária empregada do casarão, que também compartilha do sentimento de cumplicidade entre elas.
A trama do filme inspira reflexões sobre o papel da mulher na sociedade, a perspectiva feminina de mundo, amores socialmente condenáveis, a relação entre artista e musa inspiradora. Mas também tangencia temas espinhosos, como aborto – Sophie aparece grávida e as outras mulheres da casa tentam encontrar uma solução para o problema. É um filme ambientado no passado que passeia por pautas que aquecem discussões nos dias de hoje.
“É claro que há uma dimensão política, como em qualquer filme. Mas não fiz um manifesto”, explicou Céline Sciamma , que é uma das primeiras signatárias do movimento 50/50 by 2020, resposta francesa ao #MeToo americano, que reivindica equiparação de gênero na indústria e nos festivais de cinema, no encontro com a imprensa na segunda-feira (20).
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“Queria questionar a mitologia da musa, do ponto de vista feminino. Porque não há musa sem colaboração (do artista). A questão da reconstrução da identidade da mulher é feita por intermédio da imaginação”, declarou a Céline.
O personagem de Marianne (a artista é obrigada a usar o nome do pai, pintor famoso, para conseguir algum espaço em galerias) foi escrito especialmente para Noémie, companheira da diretora.
“Vejo como uma história muito contemporânea e moderna, porque busca entender que tipo de artista nós somos como mulheres, aprendendo a ter confiança em nós mesmas e ouvirmos umas às outras. Ser curiosa, enfim”, comentou a atriz em Cannes .