"Agora vou levar vocês lá para o meu quartinho em Salvador", anuncia Pitty ao pegar seu velho violão de cordas de nylon, em um momento acústico/túnel do tempo do show "Matriz". A cena, em que o espetáculo de luzes, projeções e som intensos vira um barzinho num dia de semana à noite, ajuda a explicar o álbum que a cantora baiana de 41 anos lançou nesta semana, com o mesmo nome da turnê.
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“Quando resolvi que ia para a estrada, peguei o violãozinho e disse: ‘Você vem comigo’”, conta Pitty , que mais uma vez ignora regras do mercado fonográfico em um lançamento. Em 16 anos desde o estouro com "Admirável Chip Novo", este será apenas o quinto disco de inéditas, que veio meses após o início da turnê.
“Não é estratégia, não, é só respeito a uma demanda criativa. Eu poderia lançar um disco por ano, mas acho que eles não seriam bons, seria um desrespeito com a própria obra”, diz. Cerca de dois anos depois de dar à luz Madalena, sua filha com o baterista Daniel Weksler, ela resolveu que estava na hora de voltar aos palcos e pensar em um novo disco.
“Não é que eu tenha decretado o fim da licença-maternidade. Eu percebi que ela tinha acabado. É como eu canto em ‘Submersa’, no disco: ‘Me perdi aqui, em alguma esquina desse apartamento’. O apartamento era como uma cidade que tinha ficado pequena demais para mim, estava na hora de voltar à vida”, relata.
Com algumas ideias para músicas rabiscadas em bloquinhos e gravadas aos sussurros no celular ("É o melhor recurso pra você registrar alguma coisa na madrugada, sem acordar a criança", diz), ela pegou sua banda e partiu para a nova turnê, enquanto ia compondo e gravando o disco, produzida, como sempre, pelo velho amigo Rafael Ramos, sócio da gravadora Deck.
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“Não tinha um conceito, mas ele acabou se apresentando, como na hora em que o Rafa me disse: ‘Você se ligou que esse disco tá Bahia pra caramba?’, lembra ela.
De fato, o quartinho em Salvador em que a jovem cantora da banda punk Inkoma começou a pensar nas músicas de "Admirável Chip Novo" aparece de cima a baixo em no novo disco, começando pelo sample de "Noite de Temporal", música de Dorival Caymmi de 1940, na abertura, e atravessando várias faixas. A ganchuda "Noite Inteira", já lançada como single, tem a participação de um monolito da música baiana, o cantor Lazzo Matumbi, de 62 anos.
“Ele é uma lenda, já foi backing vocal do Jimmy Cliff, cantou no Ilê Aiyê e em vários blocos e bandas de axé. Quando escrevemos a frase ‘Respeite a existência ou espere resistência’, eu precisava de um lamento, e me toquei que a voz dele seria perfeita. Gravamos em Salvador, e eu fiquei horas ouvindo as histórias dele. Ele é uma enciclopédia da música baiana”, elogia.
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Ela ainda recebe em seu novo trabalho conterrâneos mais jovens, como a cantora Larissa Luz, sucesso no musical "Elza", na faixa "Sol Quadrado" (mais uma que trata de liberdade) e o trio BaianaSystem , que compôs e gravou com a roqueira "Roda" ("Tem cavaquinho no disco!", comemora ela): "Pode olhar atravessado/ É o nosso jeito de expressar/ Quando se entra na roda, pai/ Ninguém quer parar", que bem poderia ser uma descrição dos catárticos shows do Baiana.
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A música "Motor", gravada pelo Maglore (grupo baiano, claro), é a primeira em um disco dela que não tem sua assinatura na composição.
“Acabei mostrando um pouco a minha Bahia, diferente daquela estereotipada, onde tem rock, outros gêneros musicais, e cenários que não são só aqueles tradicionais, que eu também amo, mas não é só isso, né?”, diz ela, que fala de sua vida em Salvador em "Bahia Blues": "Carranca na cara, coturno no pé/ Agreste feio mandacaru/ E o Rio Vermelho me carregou/ Cada viela, cada beco me levou".
Mas nem tudo foi dendê no processo do álbum : depois de participar de alguns dos shows e gravações, o baterista Duda Machado, último remanescente da formação de "Chip Novo" (e ex-namorado da cantora em tempos imemoriais), resolveu que não queria mais.
“Ele já vinha dando sinais, e quando estávamos nos preparando para o João Rock (festival em Ribeirão Preto - SP, em junho de 2018), decidiu que sairia. Tá tudo certo, ninguém precisa ficar se não estiver feliz, mas aí tivemos pouco tempo para arrumar um baterista”, relembrou.
O jeito foi puxar o marido, Daniel, que ficou conhecido ao fazer sucesso com o grupo NX Zero. “Eu não queria, não acho legal misturar as coisas. Mas, na emergência, fazia sentido, ele já estava ali, conhecia as músicas. Quando ele tocou com a gente pela primeira vez, não teve jeito, entrou na banda. Mas ali no palco ele é um de nós, não tem essa de marido nem de mulher”, afirma.
Ela não deixa, claro, de louvar os dotes musicais do rapaz. “Ele é muito estudioso, pesquisa, descobre novas bases. Com ele, estamos conseguindo misturar a bateria orgânica com levadas eletrônicas, algo que eu sempre quis fazer, desde o tempo em que ficava assistindo aquele DVD do Portishead, com aquelas bases e a Beth Gibbons cantando, maravilhosa”, conta.
" Matriz " lançado, a artista segue na e em outras atividades, como o programa "Saia Justa", do GNT. “Comecei a gravar a terceira temporada, eu vivo estudando para debater os assuntos. Não estou lá só pra vestir uma roupa maneira e aparecer na TV, né?, diz ela, que não assiste ao programa que faz com a apresentadora Astrid Fontenelle, a atriz Mônica Martelli e a cantora Gaby Amarantos.
“Nunca vi! Eu fico aflita, procuro defeito em tudo, melhor não assistir. Os meus clipes e DVDs mesmo, eu só aprovo, depois nunca mais aperto o play”, confessa.
No fim das contas, Pitty ainda revela se, desde que se tornou mãe, algo havia mudado. “Sabe que não? Ainda sou a mesma pessoa, só que com filho”, encerra.