Há uma parcela dos chamados queer movies que se resolvem como valorosos estudos sobre a solidão, sobre essa dor perene e angustiante do despertencimento. Alguns exemplos são “O Segredo de Brokeback Mountain” (2005), “Direito de Amar” (2009) e “Hoje eu Quero Voltar Sozinho” (2014). “Poderia me Perdoar?” adentra a essa galeria com uma peculiaridade. Se é sutil na abordagem da homossexualidade, e essa sutileza é um registro emanado da própria protagonista, é pungente no desenho de uma mulher complexa e pouco afável.
Lee Israel, vivida com expressividade, cadência e compreensão mediúnica por Melissa McCarthy, gosta mais de gatos do que de pessoas. Ela é também uma escritora frustrada. Do tipo que experimentou algum sucesso, mas viu todas as portas se fecharem, inclusive de sua agente que anda sem paciência para seu mau humor e temperamento. “Poderia me Perdoar?” logo em sua cena inicial deixa claro que essa mulher não é para se gostar.
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Ainda assim, Melissa McCarthy – em uma atuação francamente inspirada – possibilita que a audiência vislumbre os motores desse comportamento errático e, ainda que não simpatize, entenda a lógica de suas atitudes.
Curtindo a fossa um belo dia em um bar, ela encontra outro sujeito maltratado pela vida, mas Jack Hock (Richard E. Grant) é mais hábil em esconder sua desolação, ainda que assim como Lee, se ampare na bebida (no caso dele em substâncias ilícitas também). Os dois desenvolvem uma amizade a vácuo, pela pura necessidade de ter algum amparo, que não etílico, em suas existências.
As coisas começam a dar uma animada quando Lee, em meio a um desorganizado processo de vender tudo o que tem que ainda tem algum valor, descobre um talento raro para falsificar cartas de autores e artistas famosos do passado. Com o tempo, no entanto, ela percebe que por mais talentosa que seja em emular o intelecto e personalidades alheias, o mercado dos colecionadores de arte não é tão ingênuo e desprovido de defesas quanto poderia parecer.
Essa é uma história real, e como tal, há objetivos e eventos a se alcançar. Mas a cineasta Marielle Heller, com os préstimos do roteiro assinado por Nicole Holofcener e Jeff Whitty a partir do livro da própria Lee, adensa a narrativa com uma analise detida das circunstâncias daqueles personagens.
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A química entre McCarthy e Grant, ambos merecidamente indicados ao Oscar, é das coisas mais fortes e abrasadoras que o cinema recente já concebeu e torna a experiência de se assistir ao filme mais à flor da pele.
A melancolia é um estado de espírito no filme e justamente por isso a trilha sonora, sob responsabilidade de Nate Heller, privilegia o jazz e o blues para aclimatar essa história na linha “dois perdidos numa noite suja”.
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A maneira como esse desvio moral reposiciona Lee em relação a si mesma é um dividendo poderoso dramaticamente, algo muito bem capitalizado tanto por McCarthy quanto pelo roteiro, também lembrado no Oscar. “Poderia me Perdoar?” versa sobre aceitação, em um nível que vai muito além da sexualidade, e se configura como uma pequena preciosidade do cinema independente americano merecidamente eternizado pelo Oscar.