Dirigido por Peter Farrelly, de “Quem Vai Ficar com Mary?” (1998) e “Eu, Eu Mesmo e Irene” (2000), “Green Book: O Guia” é um filme extemporâneo. Se impressiona por ser uma dramédia elegante sobre conflitos raciais centrada em um bronco ítalo-americano e um sofisticado pianista negro, provoca polêmica por abordar o racismo de maneira superficial em um momento que filmes como “Pantera Negra”, “Sorry to Bother You”, “O Ódio que Você Semeia” e “Infiltrado na Klan” o fazem de maneira mais ruidosa.
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Ainda que seja uma questão pertinente à apreciação do filme, ela não pode, nem deve, ser senhora dele. “ Green Book: O Guia ” é um filme muitíssimo bem dirigido por Farrelly, a partir de um roteiro, inspirado em fatos, que privilegia o aspecto mais humano em dois personagens radicalmente opostos que obrigados a conviver por um determinado período, aprendem mais sobre si e sobre o outro.
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É o tipo de filme muito difícil de desgostar. Justamente por isso, saiu vencedor do Festival de Cinema de Toronto, uma das melhores plataformas para o Oscar . O tom conciliatório é o grande trunfo da produção, que opta por um registro mais sutil, menos agressivo dos odores do racismo em uma América ainda envolta em diversas chagas sociais por conta dele.
É uma opção legítima e que torna o filme menos divisivo, mais aprazível. Não obstante, conta com dois atores em ótima forma.
Na primeira cena de Viggo Mortensen como Tony Lip percebemos que ele é o tipo malandro de bom coração. Lip conseguiu manter-se fora do gangsterismo a despeito de praticamente todos os seus conhecidos serem da máfia. Mas Tony é rude e preconceituoso, como o eram por generalismo, os ítalo-americanos que moravam em Nova York na primeira metade do século XX. Ele é o tipo de gente que joga fora copos usados por negros.
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Viggo está em cena quando vemos pela primeira vez Mahershala Ali . Seu personagem, o músico Don Shirley, surge com certo exotismo aos nossos olhos e esta é uma disposição do bom roteiro assinado por Farrelly em parceria com Nick Vallelonga, filho do personagem de Viggo, para transferir para o público um pouco da percepção de Tony sobre Don, que vai gradativa e naturalmente sendo desconstruída.
Don precisa de um motorista que não tenha medo de fazer cara feia para conduzi-lo para uma turnê de oito semanas pelo Sul dos EUA, região historicamente mais racista do País, principalmente naquela época.
Sobre humanidades
Conforme a convivência se intensifica, o olhar de Tony sobre Don vai se transformando, assim como de Don sobre Tony e a proposta narrativa do filme, temperada pelas atuações poderosas de seu par de protagonistas, é simplesmente irresistível. O elemento humano aqui, porém, prepondera sobre a crítica ao racismo.
O tom conciliatório e a premissa da história ser contada a partir do ponto de vista do branco – reforçando aquela perspectiva sempre ingrata do salvador branco – adocica o filme mais do que o necessário e uma cena de ceia de Natal talvez seja o sintoma mais claro disso. Todavia, julgar uma obra pelas expectativas do público, seja ele qual for, também é um desvio formal de avaliação caracterizando certa desonestidade intelectual.
O filme jamais se incumbiu de criticar, ácida ou contundentemente o racismo. A ideia é sugerir como o preconceito é um atraso de vida que gera dores, desinformação e muitas angústias. Pode não ser a mensagem que fulano ou sicrano busca em um filme que trate de racismo, mas isso não torna necessariamente o filme ruim. “Green Book” é um filme muito bom naquilo que se propõe e conjuga as técnicas do storytelling com refinamento. Das atuações à montagem, tudo reluz no filme de Farrelly.
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Mas a força do filme, indicado a cinco Oscars (filme, roteiro original, montagem ator e ator coadjuvante), não seria a mesma sem Viggo e Ali. Os dois atores abordam seus personagens com a tridimensionalidade necessária. Mahershala Ali, especialmente, um ator tão técnico e tão emocional, transita por diferentes registros e traz elementos para seu personagem que reverberam com potência nos rumos dramáticos de “ Green Book: O Guia ”.