A estreia de Murilo Benício atrás das câmeras é antes de qualquer coisa uma homenagem à arte de atuar. Do processo de descortinar, de se apoderar de um personagem. Para isso ele recorre a um dos maiores dramaturgos que o Brasil já concebeu: Nelson Rodrigues . Sua versão para “O Beijo no Asfalto”, escrito nos anos 60, propõe um intercâmbio entre teatro e cinema e joga os holofotes justamente na magia da interpretação.
Benício poderia se concentrar na atualidade de Nelson Rodrigues, com uma opinião pública ciosa por escândalos, as engrenagens das fake News ou mesmo pautar uma interessante discussão sobre preconceitos. Ainda que tudo isso emane do material original e ganhe respaldo por seu olhar, seu “ O Beijo no Asfalto ” é um palco para os atores. Nesse sentido, mais do que uma homenagem se veicula como um testamento de figuras que tão bem transitam entre o cinema e o teatro como Fernanda Montenegro, Lázaro Ramos, Otávio Müller e Stênio Garcia.
"O Beijo no Asfalto" é a estreia de Murilo Benício como cineasta
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O filme abre com Benício como personagem. Ele é o diretor que ouve seus atores discutindo o texto rodriguiano. Quando o público se dá conta eles já estão encenando a peça, naquele preto e branco tão íntimo da fotografia de Walter Carvalho. As locações são sempre internas e a câmera de Benício se alterna entre a distância necessária para flagrar todo o aparato de bastidor de uma cena e o close quase pornográfico da gestação da emoção na face do ator.
O cineasta não tem a pretensão de agregar a Nelson Rodrigues e se dá por satisfeito de abrir espaço, evidenciando a perenidade e genialidade do ensaísta e cronista brasileiro, para uma elaboração vivaz e cheia de afeto pelo ofício que cultiva há mais de 30 anos e pelo qual expressa notável paixão.
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É bem verdade que “ O Beijo no Asfalto ” de Murilo Benício pode e deve ser percebido como um exercício de estilo algo hermético, mas não pode deixar de ser observado como uma colocação tenaz de um artista disposto a evoluir e sem medo de fazê-lo com assertividade.