Transformar qualquer clássico da Disney em um musical é um grande desafio. Trazer para o palco todo o encanto de uma animação requer criatividade, investimento e profissionais extremamente capacitados e, tendo tudo isso e mais um pouco, o musical "A Pequena Sereia" leva o fundo do mar para o palco do Teatro Santander, em São Paulo. A história não perdeu sua essência, mas tem grandes trunfos – elementos nacionais que fazem o público se identificar com o que está assistindo e personagens bem humanizados.
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" A Pequena Sereia " conta a trajetória da princesa Ariel que se apaixona pelo príncipe Eric que sonha em ser marinheiro. Para conseguir se aproximar dos humanos, ela desafia todas as regras do mar, o próprio pai Tritão, e ainda consegue escapar dos cuidados do divertido caranguejo Sebastião. Aproveitando-se da situação, a rejeitada Úrsula propõe a Ariel algo radical, que ela troque a voz por um par de pernas e determinada a realizar seu desejo, a sereia aceita a proposta.
Uma das coisas que mais chama atenção no musical é a personalidade de Ariel, que notavelmente ganhou mais força e garra. A responsável por aproximar essa princesa da imagem de uma heroína é a atriz Fabi Bang – que faz questão de enfatizar que cresceu assistindo a animação e está realizando um sonho de infância defendendo a personagem.
“A Ariel tem uma afinidade comigo, e vice e versa, porque ela é muito rebelde e tem um sonho muito grande. O mundo diz para ela que ‘não’, mas ela prova por A mais B que é sim possível”, afirma a atriz em entrevista ao iG Gente .
Ser sereia não é fácil
Para dar vida a sereia, ela precisa trocar as pernas por uma cauda, algo complexo já que o figurino limita o caminhar da atriz. “A composição foi bem exaustiva, porque às vezes a gente esquecia que boa parte da peça se passa dentro do mar e tinha que passar a impressão de que estava debaixo d’água. O tempo inteiro tenho que fazer um movimento sinuoso”, explica Fabi que chegou a ter os joelhos amarrados nos ensaios pela diretora Lynne Kurdziel como um exercício para deixar o caminhar mais natural.
“Agora já está intrínseco em mim, não me toco que estou sinuosa, às vezes eu estou no shopping ou em uma farmácia parada e começo a fazer movimento, as pessoas ficam me olhando e devem pensar que sou louca”, brinca.
Fora isso, toda apresentação requer uma entrega muito intensa da atriz, se ela não está no palco, pode ter certeza que está trocando de figurino, sendo pendurada ou algo parecido. Fabi não para dentro e fora do palco e algumas trocas são tão rápidas que são necessárias seis camareiras. “Eu me sinto em um pit stop, cada segundo é muito precioso.” Outro desafio enfrentado é ficar muda no segundo ato.
“Eu me vi num dilema quando recebi o texto e vi que eu passava o segundo ato calada. Estou fazendo um musical que carrega o nome da personagem que eu estou defendendo”, afirma. Para se expressar, ela se inspirou no filme "A Forma da Água" e sugeriu a diretora fazer alguns gestos de libras, algo que nenhuma outra Ariel de montagens pelo mundo tinha sugerido, e a ideia deu super certo.
A luta por um sonho
Na história, a sereia dá sua voz para ganhar um par de pernas e a atriz acredita que a mensagem a ser passada é que todo sonho tem seu preço. “Como é um conto de fadas, é algo muito radical, mas se você pensar e fizer uma analogia com a nossa vida, todos nós pagamos um preço por algo que a gente quer muito. A voz é só uma representação do quão difícil é alcançar um objetivo tão grande”, relata. “Eu pago um preço caro pelos meus objetivos, se eu colocasse minha vida dentro de um conto de fadas, sim, eu daria um pedaço de mim, como a voz, para realizar algo tão importante, sonhado e idealizado”, garante.
A inspiração para compor a protagonista foi a animação da Disney, mas Fabi não se limitou a isso e tem contribuído para humanizar a personagem. Em 2016, ela viveu outra protagonista que evidenciou todo seu talento, a cômica Glinda, do musical "Wicked". Desde então, ela virou uma estrela do teatro musical nacional e conquistou inúmeros fãs. Como sua personagem anterior era muito engraçada, parecia complicado essa transição, mas Fabi apenas reafirmou seu talento, se reinventou e está deixando o público com a sensação de que ela nasceu para ser a Ariel.
Molejo do caranguejo
Outro acerto do espetáculo é o fiel amigo de Ariel, o divertido Sebastião, interpretado com grandiosidade por Tiago Abravanel. Na animação, o caranguejo tem sotaque jamaicano, mas no Brasil, ganhou entonações nordestinas, com expressões de diversas regiões do Nordeste brasileiro. “O público está adorando porque eles se identificam”, diz o ator ao iG . Ele encara o desafio de interpretar um crustáceo, algo que não é nada simples. A diretora orientou humanizar ao máximo o animal, mas isso não eliminou as características físicas do caranguejo, como andar de lado fora da água.
Uma das principais músicas do espetáculo, “No Nosso Mar”, versão de“Under the Sea”, recebeu uma brasilidade incrível na tradução e o gingado de Abravanel está somando para deixar a cena totalmente envolvente. “Ter elementos que falam do Brasil só acrescenta para qualidade do musical como um todo, os instrumentos musicais que são citados, a coisa do dendê, tem várias referências na letra. O Sebastião tem o molejo do caranguejo e o palco vira quase um desfile de escola de samba. A gente brinca, se diverte e eu sambo mesmo”, expõe o ator.
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Além do musical, Abravanel está participando do “Show dos Famosos” no “Domingão do Faustão” e está tendo que se desdobrar entre os dois projetos. “Tive um acordo na produção para conciliar a agenda. Nas semanas que me apresento no Faustão faço as sessões de quinta e sexta. No sábado e domingo só faço quando não estou no Faustão. Ou seja, uma semana sim, uma semana não”, explica o ator que em seus shows o público já pede para cantar um trechinho da canção “No Nosso Mar” e das músicas que já apresentou no Faustão.
Vilã cômica e cheia de bordões
O elenco também conta com a veterana Andrezza Massei, que com sua forte presença de palco impressiona com a vilã Úrsula. Como a obra já existe, mas não tem a necessidade de ser fiel, a atriz se sentiu a vontade para criar e improvisar. Ela fez questão de manter a personalidade já conhecida da Úrsula e em sua pesquisa descobriu que a imagem da vilã foi inspirada em uma drag queen chamada Divine. Além de má, a personagem tem toques de humor para aproximá-la do público e um vocabulário atual e cheio de gírias como “boy magia” e frases que viraram memes.
“É uma história atual. Quando falo ‘Bela, recatada e do lar’ é um tiro, quando recebi a letra da música pensei: ‘as pessoas vão adorar’, porque é muito recente. O texto está cheio desses tiros que deixam o musical atual para o Brasil”, diz ao iG . “Fora isso, traz à tona a questão de quem luta por seu sonho, a questão do feminismo, temos duas personagens principais na história, a Úrsula e a Ariel, e a gente que carrega essa reponsabilidade, principalmente a Fabi. Não é aquela coisa da mocinha que vai atrás do príncipe, isso já é algo já batido”, aponta Andrezza que usa um dos figurinos mais deslumbrantes do espetáculo.
Técina de voo
Em momentos chave do musical é utilizada a técnica voo, algo de nível internacional, para os atores “nadarem” no palco. Tudo foi tão bem elaborado que cenas como a do afogamento do príncipe Eric tem deixado o público impressionado.
“Antes de fazer essa cena fiquei com medo, pensava ‘será que aqueles fiozinhos seguram mesmo a gente?’. Veio uma equipe dos Estados Unidos e ensinou passo a passo para a gente e é algo extremamente técnico. Agora não tenho mais medo”, explica o ator Rodrigo Negrini intérprete do príncipe. “É uma cena que amo fazer e fico esperando esse momento, mesmo não sendo nada confortável por conta do equipamento. Tem vezes que o pessoal aplaude, grita, porque é uma surpresa para eles. É um momento que não preciso falar, cantar, é uma total expressão corporal.”
Depois de uma longa carreira, Negrini encara seu primeiro protagonista. “Está sendo um desafio e uma responsabilidade porque é a primeira animação que lembro de assistir quando criança. É um momento muito especial”, confessa. “É um príncipe que quer largar tudo para ser uma pessoa normal, um marinheiro, ele tem a educação de um príncipe, mas também uma vontade de ser livre e tento trazer essas duas coisas. Acho parecido comigo, principalmente o lance aventureiro, e de quer viver sua própria história.”
Linguado adolescente
O peixinho Linguado, que na animação é criança, se torna no musical um adolescente que usa bermuda, tem um jeitão de garoto de rua e gosta de hip hop. “É um desafio porque em momento algum quis fazer uma criança, porque não sou uma e consequentemente não ficaria legal. Tive muita preocupação de mesmo sendo um adolescente não perder a essência do desenho que é fofo e um fiel amigo. No musical, temos uma pitada a mais, como o ‘crush’ que ele tem na Ariel”, fala o ator Lucas Cândido.
O jovem talento empresta toda a sua doçura ao peixe amarelo e azul e isso o torna ideal para o papel. “A Fernanda Chama [diretora artística e coreógrafa] sempre passa por mim e fala ‘mas você é mesmo a cara do bichinho’. Como pode, né? É a cara de um peixe”, brinca Cândido.
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" A Pequena Sereia " não teve na Broadway o sucesso que outras versões de clássicos da Disney galgaram, como "A Bela e a Fera" e "O Rei Leão", talvez pela dificuldade de levar sereias, peixes e uma vilã cheia de tentáculos para o palco. Entretanto, a versão não réplica do musical, em cartaz em São Paulo, deixa claro que por aqui o espetáculo está sendo um sucesso e o segredo para isso se deve ao toque nacional que o espetáculo recebeu, aproximando o conto de fadas da atualidade e dos brasileiros.