A Academia acusou o golpe. Após o vendaval que varreu Hollywood na esteira das denúncias de assédio sexual pouco depois do #oscarssowhite, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas voltou-se ao passado, afinal só se faz 90 anos uma vez, mas toda melindrosa com seu futuro na cerimônia do Oscar neste domingo (4).
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Diversidade e representatividade foram as palavras-chaves da noite, que começou com o anfitrião Jimmy Kimmel bem menos ácido do que o habitual e fazendo um desagravo à própria Academia, preocupada com a imagem arranhada com tantos de seus membros atingidos por denúncias. " Oscar é o homem mais amado e respeitado em Hollywood. E há uma razão muito boa para isso. Olhem para ele. Ele mantém as mãos onde você pode ver. Nunca diz nada rude. E, mais importante, ele não tem pênis. Ele é literalmente uma estátua de limitações", disse.
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Foi nesse clima de tolerância que a noite seguiu. Nesse sentido, as escolhas da Academia foram pontuais, ainda que compatíveis com o desenho da temporada. O triunfo de “A Forma da Água” , um filme que fala tanto de tolerância como de afeto, e é capitaneado por um mexicano, legitima o espírito do momento. O filme tem uma personagem negra que sofre preconceito na América dos anos 60, uma heroína muda, que é uma faxineira que vive sua sexualidade sem constrangimentos, um homem gay, velho e solitário e uma criatura marinha incompreendida. É um salpicão de metáforas que vai ao encontro dos ruídos que fervilham em Hollywood atualmente.
O feito de del Toro, terceiro mexicano a triunfar na categoria na década, é ainda mais memorável porque seu filme é uma fantasia. É a primeira vitória de um filme de gênero no Oscar desde “O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei” em 2004, mas sem o peso da literatura. Aqui o filme é totalmente original, a despeito das inúmeras acusações de plágio que já pipocaram por aí.
Mais subversivo seria premiar “Corra!”, que fora premiado em Roteiro Original. O filme é uma sátira social aguda sobre o racismo e também é um filme de gênero. Em um dado momento da cerimônia, a disputa pelo prêmio de Melhor Filme parecia confinada aos dois. Definitivamente são tempos distintos na Academia. Mas não tão diferentes assim. Afinal, com exceção da vitória de “Uma Mulher Fantástica”, o filme chileno não era apontado como o favorito entre as produções estrangeiras, o Oscar obedeceu às tendências da temporada ao invés de se pronunciar com a autoridade de ser o maior e mais significativo prêmio do cinema.
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Alinhavado a este raciocínio estão os prêmios nas categorias de atuação em que saíram consagrados Sam Rockwell (“Três Anúncios para um Crime”), Allison Janney (“Eu, Tonya”), Frances McDormand (“Três Anúncios para um Crime”) e Gary Oldman (“O Destino de uma Nação”). A Academia consegue ser criativa e surpreendente nas indicações, mas ainda não conseguiu se libertar de certos vícios na hora de escolher seus premiados. Há uma lenta mudança em gestação, mas ela talvez seja mais lenta do que o Oscar precisaria para manter sua ascendência como grande prêmio do cinema.
A opção por “A Forma da Água” em detrimento de “Corra!” e até mesmo de outros candidatos mais divisivos como “Três Anúncios para um Crime”, talvez esteja alinhada ao tom político mais ameno que pairou sobre a 90ª edição do Oscar. Bem diverso daquele arredio e explosivo que pautou o Globo de Ouro em janeiro. O tom branco predominante no tapete vermelho era um sinal de que Hollywood persistirá na busca por mudanças estruturais, mas talvez com mais ternura. Um sentimento que, entre os indicados a Melhor Filme, apenas “A Forma da Água” era capaz de cristalizar.