De um lado, as palavras ganhando força pela sua própria sonoridade, pela combinação rítmica das suas rimas ou até mesmo pela sua composição visual. Do outro, elas roubam os holofotes ao casarem com os sons das cordas, dos sopros ou das pecursões que tocam de maneira íntima a psique humana. Apesar da poesia e da música serem duas artes distintas, a convergência entre ambas torna-se uma constante no universo artístico – em uma linha tênue que muitas vezes parece deixar de existir.
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Experimentar a amplitude da palavra, por sua vez, é um desafio que alguns artistas encaram tanto na música quanto na literatura , como fizeram Chico Buarque, Arnaldo Antunes, Karina Burh e, mais recentemente, o ex-integrante da banda Novos Baianos, Moraes Moreira, que em novembro de 2016 lançou seu primeiro livro de poesia escrita. “Por definição, a literatura trabalha com a musicalidade da palavra. As duas artes [música e literatura] são muito próximas desde o nascimento”, comenta o professor da Faculdade Cásper Líbero Wellington Andrade.
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Ainda que elas apresentem essa característica em comum, Andrade defende que há particularidades entre ambas bastante específicas. “No caso do Bob Dylan e outros grandes músicos, como Chico Buarque ou Caetano Veloso são duas coisas diferentes: uma é a letra que tem independência própria e autonomia e outra é a música que dá suporte aquela letra e amplifica-a. Então todo grande poeta da música brasileira pode ser um poeta da literatura porque faz um texto escrito”, reflete o professor. “A qualidade é da letra e da música. A literatura não trabalha com a musicalidade, ela vê a música como uma segunda arte, a ser uma arte pra ela”, completa.
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Já para o músico e professor da Universidade de São Paulo Luiz Tatit, a poesia presente na música está distante daquela escrita em livros literários. “Aqui no Brasil, de certa forma no ocidente, existe uma certa migração da área de literatura para a área de canção, que tem melodia e letra”, explica. “A literatura visa outras coisas, outro programa que está por traz. Na canção o projeto é estabelecer uma relação compatível entre melodia e letra, então na verdade as linguagens são bem diferentes”, comenta. Para ele, há um movimento de que os literários se aventurem mais no campo da canção, até por conta de sua projeção. “O fato de a canção ter mais projeção, sobretudo pop, comercial atrai muita gente da literatura. De uma certa forma foi isso que fez Vinicius de Morais, ele ficou exercitando fazer letra de canção para que sua obra fosse mais expandida”, completa.
Músico ou autor?
Ainda que exista diferenças visíveis entre ambas as artes, alguns artistas deixam-se perder no espectro limitante entre ambas. Para Tatit, certos músicos brasileiros, que já possuem certa afinidade com a literatura acabam trazendo essa intimidade com as palavras para o universo musical. “Eles acabam querendo traduzir um pouco aquilo que a literatura faz em letras de canção, mas não é o que predomina”, comenta. Entretanto, o músico defende que a letra de música quando há melodia acompanhando. “O cancionista quer que saia alguma coisa com melodia, não quer se valer de recursos literários porque o poema não vai ser lido, vai ser ouvido”, explica.
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Já Andrade acredita que exista uma pré-disposição em alguns artistas para que se deixem romper as fronteiras entre os dois mundos, já que o universo da palavra é do artista. “O poeta pode se interessar pela música porque ela tem a predisposição da musicalidade da palavra, tem a palavra discursiva, que é logica se limita na prosa, mas tem a palavra entoada, que é a sonora”, reflete.
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Para o literato, a música tem bastante influência na escrita literária, ainda mais no contexto brasileiro em que a oralidade é uma característica intrínseca à cultura do país. “Ela é muito rica, muito expressiva, então grandes escritores como Guimarães Rosa e Euclides da Cunha incorporaram essa musicalidade na literatura deles”, reflete o professor.
Bob Dylan e o Nobel de Literatura
A discussão sobre a convergência entre a música e a literatura recebeu mais uma vez os holofotes voltados para si nos últimos meses após o anúncio em outubro do ano passado de que o compositor Bob Dylan ganharia o Nobel da Literatura de 2016. Em uma longa carta, o autor afirmou que “nossas músicas estão vivas na terra dos vivos. Mas músicas são diferentes da literatura. Elas são para ser cantadas, não lidas”. A escolha, do músico para receber um dos mais respeitados prêmios da literatura, entretanto, foi controversa.
“Eles aproveitaram para dizer que afinal ele tá fazendo um texto como em literatura, uma explicação meio oportuna porque na verdade não tem muito sentido”, comenta Luiz Tatit sobre o caso. “Ele faz letras parecendo um pouco quase que narrativas, que tem historia, personagens, tem uma certa identidade nesse sentido, mas na verdade eles teriam muitos outros autores de livros no mesmo ano”, reflete o músico que acredita que isso é mais uma prova do interesse de literatos no universo da canção e na expansão da literatura para esse ramo.
Por outro lado, Wellington Andrade acredita que o prêmio não foi um ponto fora da curva e que, na verdade, foi uma boa escolha. “Nós colocamos como novidade, um modismo, uma excentricidade, mas a academia assumiu que Bob Dylan é fardo popular da música pop ocidental que merece se reconhecido na literatura”, comenta.