Se no meio de um café qualquer um assunto sobre jornalismo e literatura surgir, é certo que também sairá dessa conversa alguma coisa sobre crônica . Esse gênero textual, muito bem recebido pelos leitores brasileiros, leva para os jornais e livros não só um momento de entretenimento, mas algo que também pode carregar subjetividade, crítica e denúncia sob um disfarce que se estrutura com uma narrativa extremamente peculiar e única.
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“É um gênero diferente de um ensaio, de um romance, que são tipos de texto mais exigentes. A crônica permite mais que as pessoas se aventurem por ele”. De acordo com a doutora em linguagem e educação Mei Hua Soares, professora de língua portuguesa, a crônica tem início no Brasil no século XIX, época na qual alguns autores como Machado de Assis e José de Alencar passeiam pelo gênero. Ainda segundo a docente, a crônica é um tipo de texto aberto, que permite uma expansão muito maior daquilo que se conceitua como o ato de escrever.
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Passeando por uma trilha que tem espalhados pelo caminho nomes que vão desde o de Luis Fernando Veríssimo e Marcelo Rubens Paiva até o de autores como Machado de Assis , João do Rio e Rubem Braga , personalidades que configuram um time de peso no que diz respeito a crônica brasileira, é que o iG Gente resolveu falar um pouquinho dessa mescla de literatura com jornalismo e do que ela vem representando nas terras tropicais desde o início dos tempos até os dias de hoje.
Os grandes nomes da crônica no Brasil
Machado de Assis, João do Rio, Rubem Braga e Luis Fernando Veríssimo . Esses quatro nomes são apenas alguns de muitos que não podem deixar de ser mencionados quando o assunto é sobre crônica no Brasil . Feitos como as mais de seiscentas crônicas escritas por Machado, o entusiasmo intrínseco e particular de João do Rio com a “alma encantadora das ruas” e a grande capacidade de Veríssimo no que diz respeito ao uso do humor na medida certa em cada texto, é que o universo literário-jornalístico foi e ainda é o berço de um gênero textual simples e flexível o suficiente para carregar uma mensagem, qualquer que seja ela, desde que dentro do ideal de perspectiva de cada autor.
De acordo com o cronista Guilherme Tauil e autor do livro “Sobreviventes do Verão”, coletânea de 35 crônicas, esse gênero no Brasil teve início com um escritor em especial e os folhetins: Francisco Otaviano. Até o final do século XIX, o rodapé dos jornais continha pequenas notas que relatavam a programação cultural das cidades, tendo que costurar assuntos diversos como peças de teatro, corridas no Jokey Club e os bailes da semana. Por isso, um toque especial foi surgindo na forma de ligar todos esses eventos, e foi daí que o texto enquanto crônica começou a dar os primeiros passos.
Segundo Guilherme, não só Francisco Otaviano contribuiu para a formação do caráter desse gênero, mas também autores como Machado de Assis , João do Rio e principalmente Rubem Braga . “Com o Machado de Assis, a crônica ganhou importância literária e deixou de ser tão objetiva. O espírito da pessoa que vai à rua começou com o Francisco Otaviano e com o João do Rio também ainda era bem jornalístico. Ele ia às ruas de fato querer saber da vida no subúrbio, dos estivadores, do cais, de uma gente que não figurava, mais pobre, que não aparecia”, relata. “E depois o Rubem Braga é quem transforma a crônica exatamente no que a gente conhece hoje”, termina.
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Mas, mesmo que a história da crônica tenha começado lá atrás, há muito tempo, essa prática literária e também jornalística seguiu perpetuando os âmbitos da comunicação e não deixou de existir - ainda que algumas mudanças sejam inevitáveis e tenham transformado em alguma medida o fazer dos cronistas atuais.
Para a doutora em linguagem Mei, nesse sentido de atemporalidade, um dos grandes nomes da crônica no Brasil atualmente é o de Luis Fernando Veríssimo . “O Luis tem uma escrita bastante precisa e tem a capacidade de trazer aquela minúcia em coisas muito irrelevantes por intermédio da escrita, deixando elas grandiosas”, opina a docente. Concordando com o raciocínio de Mei, a social media e estudante de letras Mariana Agati também considera que Veríssimo carrega consigo um diferencial. “Ele deu, com certeza, uma nova cara pro gênero e o legal é que ele conseguiu viver duas épocas. Escrevia no impresso e hoje em dia ele também escreve pra internet. Ele conseguiu escrever crônica nas duas plataformas porque viveu a transição da linguagem”, diz.
Veríssimo, Machado, Rubem Braga, João do Rio... Todos donos de grandes nomes no mundo literário , mas que resguardam, além desse, mais um ponto em comum: são homens. Para a professora de língua portuguesa Natália Sanches, o feminino é um ponto um tanto carente no universo da crônica . “Mulheres não têm muitas cronistas, o que eu acho bem triste”, opina. “Uma das únicas que eu conheci é a Clarice Lispector, tem a Olga Savary também, mas atual, alguma que só escreva crônica, não conheço”, relata.
Crônica: um “subgênero” da literatura?
Podendo ou não ter compromisso com o factual, a crônica brasileira é um tipo de texto curto que carrega uma síntese, além de ter relação com o tempo atual. De acordo com a professora de língua portuguesa Mei, muitas vezes esses pequenos textos são cheios de humor, mas não é só aí que ficam os tipos de crônica.
O gênero, justamente por ser mais abrangente e flexível, dando uma maior permissividade ao autor no momento de escrever, possibilita que todo tipo de conteúdo seja retratado. “Basicamente a crônica como a gente conhece hoje é um texto curto, cuja finalidade é a publicação num veículo. Muitas vezes ela é recheada de humor, mas há outras tonalidades que aparecem também. Há céticas, políticas... É um gênero bastante elástico”, relata a docente. “Embora ela seja muito concisa, ainda permite alguns hibridismos. Ela transita entre os gêneros de conto, poemas e por isso é bastante flexível”, explica.
No entanto, ainda que a crônica carregue consigo a nobre característica de ser um gênero textual moldável e versátil, permitindo que autores tenham uma maior liberdade na hora da escrita, o olhar sobre ela não carrega a mesma nobreza, ou o reconhecimento que deveria. Para o cronista Guilherme Tauil, o ponto principal da aceitação da crônica não está nas mãos do público, e sim do meio literário . “A crônica pena muito com o sistema literário de um modo geral, incluindo a academia [...] No mercado, é um problema porque tem editora que não publica textos que já foram publicados na imprensa. Há editoras que publicam bem, mas existe essa resistência”, diz.
De acordo com o escritor, existe uma carência de reconhecimento individual que valorize a identidade da crônica.“Se você pensar em concurso literário, não existe uma categoria pra crônica, são pouquíssimos os que dão. Os que têm, juntam conto e crônica, o que não tem nenhum sentido. E o conto sempre ganha nessas categorias”, relata. “Ao mesmo tempo que é um gênero super lido e adorado, enfrenta esse tipo de preconceito do próprio sistema. Eu sempre sou o ‘cronista’, não o ‘escritor’”, desabafa Guilherme.
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Para a social media Mariana Agati, existe, sim, a falta de um olhar que prestigie mais a crônica , mas isso fica para a parte acadêmica- literária . Para o público, o gênero dá muito certo por um motivo em especial (entre tantos outros): carregar a essência brasileira. “A ideia de crônica que a gente tem é bem brasileira. Acho que combina com o perfil do país porque ela é bem irreverente, é quase uma conversa de bar. Principalmente nos anos 30, 40”, opina a estudante de letras.
Com esse mesmo raciocínio proposto por Mariana, Tauil concorda. “A crônica é um gênero muito bem recebido pelo brasileiro. Prova disso é que ela nunca saiu do jornal. Teve seus altos e baixos, nos anos 90 ela quase deixou de existir por conta do espaço tomado pelo colunismo, mas por parte do público, todo mundo lê e gosta de ler”, relata.