“Oi, é a Hannah. Hannah Baker. Acomode-se, porque vou contar a história da minha vida. Mais especificamente, como minha vida terminou”. A primeira fita a ser escutada por Clay (Dylan Minnette) não deixa dúvidas para o telespectador sobre o que será tratado ali naqueles treze episódios que compõem a produção original da Netflix “13 Reasons Why” : o suicídio. A série que foi ao ar no dia 31 de março rendeu intensos debates nas redes sociais e invadiu até mesmo as universidades levantando uma grande discussão acerca da saúde mental e os possíveis limites da produção audiovisual.
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“Minhas primeiras impressões em relação ao formato de ‘13 Reasons Why’ é que ela foi bem feita, mas eu achei muito estranho que ela fala de culpa por ter se matado. Hannah deixa 13 razões para isso e as 13 razões são pessoas e eu achei bizarro”, comenta a profissional de marketing Carolina Munhão. Fã de séries, Munhão relatou que o fato de ser uma produção original da Netflix atraiu seu olhar para o seriado. “Eu achei que eles fossem se aprofundar um pouco nisso durante o enredo, mas não teve muito aprofundamento. Ela conta o que cada um fez e coloca a culpa direta nas pessoas pelo suicídio, o que eu acho que é uma forma totalmente tórpida de conscientizar as pessoas sobre esse assunto”, completa.
Já para a estudante de medicina Lidia Chiang, a série retratou uma realidade muito próxima. “Na minha sala quase todo mundo assistiu a série e inclusive muitas pessoas se identificaram com alguns acontecimentos. Nós nos identificamos muito com o ambiente que eles mostram no colégio porque é um ambiente muito parecido com o que a gente tem nas faculdades de medicina”, comenta a jovem. Para ela, a série foi muito cativante, apesar de ter sido difícil de assistir em alguns momentos. “A Netflix é uma empresa grande e eles colocarem uma série dessas no ar já encoraja algum tipo de discussão. Eu acho que virou um assunto da moda que nem foi ‘Stranger Things’, ‘The OA’, mas como a temática é muito pesada e próxima da nossa realidade eu acho que ela gerou um outro tipo de debate, a gente começou a olhar para a nossa própria sociedade e as pessoas começaram a se sentir mais seguras para falar sobre o assunto”, completa Chiang.
Apesar de ter prendido alguns telespectadores, a trama de “13 Reasons Why” quase fez com que a estudante de jornalismo Larissa Rosa pensasse em desistir de acompanhar os episódios por achar que eles seguiam uma lógica muito apelativa. “Eu lembro de uma impressão que me deu em algum episódio que parecia dramático, um pouco desproporcional e eu quase desisti de assistir a série porque estava parecendo muito um dramalhão, sem muita razão de ser. Só que aí conforme foi se desenrolando eu me lembrei como era ser um adolescente e que a adolescência é muito drama no sentido de desproporcionalidade. A gente sente as coisas de uma forma muito intensa”, revela. “Eu não tenho uma opinião formada sobre a série. É um assunto delicado, mas que precisa ser tratado e que a série acabou trazendo ele. Tanto que na internet as discussões parecem ter uma data de validade, e essa não, essa está se estendendo porque juntou com o jogo ‘Baleia Azul’ e com várias coisas reais da sociedade”, completa.
O debate sobre a saúde mental e as séries da Netflix alcançou até mesmo a Academia da Psicologia, como mostrou a psicóloga Tatiana Perez. Em Porto Alegre, a profissional decidiu criar um curso de extensão voltado para a temática da psicologia e das produções audiovisuais da Netflix, com base na série “13 Reasons Why”. “A Netflix tem sido uma influenciadora de debates e as pessoas que chegam no meu consultório vão comentando as séries que assistiram. A gente fala de ‘13 Reasons Why’ agora, mas ‘Black Mirror’ também fez parte dessas discussões. Elas têm feito as pessoas pensarem, conectarem com seus sentimentos e seus comportamentos”, revela Perez. “A escolha de fazer um curso sobre essa série também foi por uma questão de abordar uma temática que é necessária, mas ela também trabalha o bullying e relações de gênero, como por exemplo no momento que a Hannah é taxada de vadia e perde toda a possibilidade de explorar a própria sexualidade”, completa.
Os limites da ficção
Dentre os diversos debates que rodearam o lançamento “13 Reasons Why”, as cenas gráficas de estupro e suicídio foram algumas das mais comentadas. Os episódios que contém essas imagens vêm, inclusive, com um aviso antes do início, alertando para os telespectadores que as cenas a seguir podem ser difíceis para algumas pessoas. A polêmica acerca do assunto foi tanta que o próprio autor da obra literária que deu origem à série, Joy Asher, chegou a defender na imprensa o uso desse material. "Você tem que se sentir desconfortável quando estiver assistindo; senão você não entenderá. De certa forma, é desrespeitoso se dissermos: 'Sabemos que isso está acontecendo, mas não queremos ficar desconfortáveis com isso’”, comentou o autor em entrevista concedida ao Buzzfeed norte-americano.
“Sempre que acontece uma coisa drástica, a gente procura culpar alguma coisa e a ficção e o entretenimento acaba levando a pior, como o que aconteceu em Columbine por exemplo que culparam o Tarantino, videogames e Marilyn Manson por terem influenciado os jovens a realizar a chacina”, comenta a youtuber Fernanda Braz, do canal OKOK. A influenciadora percebeu o burburinho sobre a série e resolveu realizar um vídeo comentando sobre o assunto para os seus fãs, que são majoritariamente adolescentes. “Eu percebi isso porque todas as críticas começavam com ‘cuidado: não deixe seus filhos adolescentes assistirem à série porque se eles tiverem em um estado de depressão pode ser um gatilho’. Quando você lê isso, você pensa ‘ah legal que haja essa preocupação com o jovem e adolescente’. O problema é quando você fala que é perigoso e não quando você fala sobre a série em si, sobre o suicídio, sem tabu, sem banalizar”, critica. “O pior pra mim é subestimar os adolescentes. Se você não está bem a série vai te levar mais pra baixo, porque é um tema super deprê, mas eu acho perigosíssimo culpar uma obra de ficção”, completa.
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A influência de cenas de violência na produção audiovisual ou até mesmo nos jogos de videogames, como bem relata Fernanda Braz, não é uma novidade na discussão sobre saúde mental para os psicólogos. “Eu acredito que toda pessoa que cometa algum atentado à vida já tem uma coisa que está desequilibrada ali, igual quando refere ao GTA, que o pessoal reclama muito que os jogos são violentos e instigam a violência, mas será que é só isso mesmo? A nossa vida foi permeada por desenhos como ‘Tom e Jerry’ ou ‘Pica Pau’, que se batem toda hora, por exemplo”, reflete a psicóloga Juliana Farias, que é pós graduanda em adolescência e formação em Terapia Cognitivo-Comportamental. Entretanto, para ela, a série é passível de críticas. “Nesse ponto a série foi um pouco desnecessária porque muita gente diz que é um gatilho muito forte não só essas cenas do suicídio e estupro, mas por outros acontecimentos também, apesar de ter no começo de cada episódio o aviso. Acredito que tenha outras formas de se abordar isso, dá para colocar de uma maneira mais implícita, não precisa ficar tão explícita”, comenta.
O psicólogo Werley Oliveira relembra outros casos em que a ficção foi acusada de incentivar o suicídio no passado. “Há relatos do século XVIII com ‘O sofrimento do jovem Werther’ que muitos jovens se suicidaram naquela época, mas eu acredito que os jovens já tinham um problema e isso só potencializou”, afirma o profissional. A onda de suicídios chamou tanta atenção dos profissionais que foi desenvolvido o conceito de “efeito Werther”, com base na obra de Johan Wolfgang von Goethe, de 1774. O nome refere-se a um aumento sistemático de suicídios que podem ser potencializados por diversos fatores, como por exemplo com o caso da atriz Marilyn Moroe, que foi acusado de influenciar o aumento de 12% na taxa de suicídios após um mês da sua trágica morte. Entretanto, o psicólogo assegura: “Em termos da psicologia eu acho que tem um lado positivo nisso tudo, porque eu vejo como uma maneira de as famílias começarem a entrar nesse assunto, discutir isso”, reflete. “Todavia, há esse lado perigoso, que se uma pessoa já tem uma tendência isso pode potencializar, mas eu não acredito que uma série vá levar ao suicídio”.
Para a psicóloga Tatiana Perez, ao produzir uma obra de ficção pensar sobre como ela pode atingir os telespectadores é importante. “Deve ser uma preocupação quando vai produzir uma obra de arte. Eles não mostram no final da série você não está sozinho, que é possível procurar ajuda. Em alguns episódios aparece no início pode ter cenas chocantes, mas não mostram onde procurar ajuda. Esse tipo de cuidado seria interesse”, reflete a profissional.
Tania Paris, fundadora da Associação pela Saúde Emocional de Crianças (ASEC), endossa a importância dos produtores de obras audiovisuais para a exibição de um programa. “Aquilo que está sendo veiculado vai formar opinião e a responsabilidade é de quem produz esses programas. Então, há uma necessidade muito importante de se assegurar de que esteja alinhado aos espectadores, como a Netflix entrar em contato com o CVV (Centro de Valorização da Vida) para veicular um telefone de ajuda, por exemplo. Quem está produzindo alguma coisa não deveria expor opinião de leigos”, comenta.
Censura
Ainda que as obras de ficção tragam cenas gráficas, como acontece com “13 Reasons Why”, é unanimidade entre os psicólogos que não se pode falar em censura dessas produções. “Para adolescente proibição é querer para assistir. Adolescência é fase da transgressão e no momento que algo é proibido vai dar muita vontade de assistir e coloca a produção num patamar muito superior ao que ela de fato é. Se a gente for pensar o tipo de imagem que os adolescentes têm acesso na internet, a série pode ser fraca perto do que eles já assistiram”, comenta Perez. “Censurar dá uma dimensão muito maior e é interesse dialogar”, completa.
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Werley Oliveira aponta que há outros caminhos para lidar com produções que abordam temáticas complexas, como a série da Netflix. “O caminho é discutir o assunto e a série propõe isso. Tem algumas falhas, mas por outro lado tem que considerar que isso abre espaço para diálogo e é importante para que os pais começem e pensar no assunto”, reflete. “A gente vive na era da informação, se não deixa assistir em casa, vai ver no celular, na casa do amigo, ele vai arrumar uma maneira de assistir se estiver interessado. Quanto mais você tentar proibir vai atingir o efeito contrário”, completa.
Fernanda Braz, que acompanha de perto das novidades do mundo do audiovisual critica qualquer tentativa de censurar a veiculação de alguma obra. “Acho que uma obra de ficção o autor tem que ter a liberdade de contar a história se não pra mim acabou a arte, acabou tudo”, comenta. “De maneira alguma eu acho que uma obra tem que ser censurada. Pelo menos as melhores obras de ficção para teens são as mais cruas e honestas, como ‘Skins’ que adolescentes fumam maconha. A Effy [personagem de Kaya Scodelario], por exemplo, até já tentou se matar em uma das temporadas. As obras que abordam assuntos de forma direta e mais crua são as mais importantes e as mais legais” completa.
E agora?
Com a série já lançada e disponibilizada na plataforma de streaming, os especialistas afirmam que a maneira de lidar com esse conteúdo pode ser repensada e que o debate deve ser ampliado. “Melhor resolução é assistir em conjunto. O suicídio é temática da série mas é desde 2012 uma das principais causas de morte”, assegura Tatiana Perez. “Precisamos falar também sobre a complexidade do sofrimento, do processo de empatia de toda as personagens e não só com a Hannah, todos eles passaram por situações”, completa.
Para Juliana Faria, há outros focos na discussão que devem ser levantados. “Tinha que ter um debate principalmente referente ao machismo que as meninas passam e o quanto que isso na escola acaba sendo uma coisa que não tem visibilidade e pode acontecer de uma maneira sutil. Acho que todas as meninas que assistiram a série acabaram se sentindo identificadas em alguma coisa”, reflete.
Tania Paris, por outro lado, defende que o olhar para a série pode ser repensado. ”Que a gente não olhe para ‘13 Reasons Why’ como “ai eu tenho uma dessas razões então esse é o caminho’. Eu acho que o ponto crucial é ‘essas 13 razões levaram Hannah a um sofrimento com o qual ela não conseguiu lidar e nem pedir ajuda’”, comenta. “90% dos suicídios poderiam ser evitados de acordo com a Organização Mundial da Saúde e o que falta é a ajuda adequada. O suicídio é uma forma de comunicação de um sofrimento muito grande. Então agora falando sobre a indústria do entretenimento ou a discussão sobre ela, é fundamental a questão de que pode pedir essa ajuda”, completa.