
Nany People lançou no início do mês de junho a segunda parte de sua biografia com reflexões sobre a vida artística, amadurecimento e resistência. A obra, intitulada “ Ser Mulher Não É Para Qualquer Um: A Saga Continua ”, percorre os últimos dez anos da trajetória da artista.
Em entrevista exclusiva ao iG Gente, Nany afirmou que a maior surpresa durante o processo foi perceber sua nova forma de encarar a vida: “ Eu acho que estou mais contemplativa e muito agradecida por tudo que a vida tem me dado ”.
A publicação revisita sua carreira no teatro, televisão e na música, e expõe os bastidores de uma mulher trans que desafiou o tempo, o sistema e o preconceito. " Uma vida de mulher trans no Brasil, sem fazer militância, não passa de 35 anos. Então eu sou fora da curva ", afirma.
A atriz também compartilha detalhes da turnê com seis espetáculos solos, da relação com o teatro e do papel da arte em sua saúde mental.

Nany critica etarismo e desrespeito à trajetória
Nany People lamenta o preconceito com a idade e a falta de memória cultural no Brasil. “ O Brasil é o país que mais vai ter gente madura daqui para frente e cada vez mais emburrecidamente ele cultua a juventude ”, afirma. Aos 60 anos, ela destaca que muitas pessoas ignoram as conquistas dos artistas veteranos.
" As pessoas não respeitam o teu histórico. É igual construir uma casa e ouvir: 'Ah, você devia ter colocado a escada do outro lado'. Ninguém sabe o que você gastou com pedreiro, cimento, projeto.. .", diz. Para a atriz, o etarismo é uma forma cruel de invisibilizar o talento.
Ela destaca que envelhecer com autonomia é um privilégio construído com muito trabalho: “ Uma pessoa de 60 hoje tem liberdade, autonomia, planeja a vida. Nunca é tarde para nada ”. A biografia busca exatamente mostrar que viver com intensidade é possível em qualquer fase.
“ Vocês vão ter que me engolir, querido. Eu ainda estou aqui e vou continuar por muito tempo ”, dispara. Ela também critica a forma como a sociedade costuma encaixotar artistas. " Querem sempre que você seja a cabeleireira exótica, a traficante, a drag engraçada. Eu prefiro montar meus solos. "
Mesmo com resistências, ela segue em atividade com seis espetáculos, turnês internacionais e lançamento de livro. " O palco me ensina que você nunca é, você está. O artista só para quando para de produzir. Quer matar um artista? Tira ele do palco ."

Teatro é sustento, abrigo e amor
Nany conta que vive exclusivamente de teatro desde os anos 1980. Ao sair de Minas Gerais, mudou-se para São Paulo para estudar artes cênicas e não abandonou o palco desde então. “ O teatro foi o melhor marido que eu podia ter. Ele me ouve, me acolhe e ainda paga minhas contas ”, afirma.
“ Eu cheguei aos 20 anos aqui, há 40 anos, e fui fazer escola de teatro. Já fazia teatro desde os 10 anos lá em Minas Gerais. Quando entrei no banco e me promoveram para 8 horas, pedi demissão. Vim para ser artista ”, relata.
Ela rejeita a ideia de ter um empresário ou depender do mercado para trabalhar. " Eu não espero o mercado me chamar. Eu monto meus espetáculos. Faço igual Paulo Gustavo: a gente não espera, a gente faz acontecer ", afirma.
A independência sempre foi parte de sua trajetória. “ Minha vida toda foi apostada em cima do não. Não pode, não é comum, não é viável. E eu sempre respondi: por que não? ”
Ela afirma que abrir mão de uma vida pessoal mais estável fez parte da escolha. “ Eu casei com o teatro, e não me arrependo. É o melhor companheiro que eu poderia ter ”. Nany também se orgulha de ter levado a família a uma vida mais digna graças à arte.
Mesmo com décadas de trajetória, ela não se acomoda. “ Sempre tem algo que eu quero explorar. Adoraria fazer uma vilã. O artista morre quando para de se reinventar .”

Livro mistura humor e confissão
O livro é um relato dos últimos dez anos de uma artista inquieta. “ É um livro divertido que fala de forma confessional sobre uma pessoa que não deixou de ousar sendo quem é ”, resume. Segundo ela, a obra fala sobre constatações, frustrações, perdas e conquistas.
“ Mesmo com todas as pedras no caminho, eu sempre vejo o bom lado da vida. E isso não tem nada a ver com ingenuidade. Tem a ver com sobrevivência ”. A biografia é publicada pela Editora Humanos e estará à venda com frete grátis pelo site da editora.
Nany reforça que o otimismo é uma escolha. “ Tem gente que vai em festa e só vê o lado ruim. Eu não tive tempo de me tornar amargurada. A pandemia me ensinou muito. Fiz um bota-fora na vida e fiquei só com meus cachorros ."
Ela também fala sobre o processo de envelhecimento: “ Minha filha, pode fazer 50, 60, 70, faça as pazes com o tempo. Porque a cabeça para nos 30 e o corpo para dali pra baixo. Mas quando você planeja, você tem autonomia ”.
O livro é também uma forma de documentar um legado. “ Desafio o mundo desde que saí da barriga da minha mãe. Agora, aos 60, não querem que eu fique bem para a idade? Eu sou uma exceção à regra ”, dispara.

"Gongada Drag", novas gerações e futuro
Nany também comentou a importância da “ Gongada Drag ”, espetáculo que resgata artistas veteranas da cena drag e apresenta ao público atual. “ Eu acho maravilhoso o que o Bruno tá fazendo. Me convidou desde a primeira Gongada ”, conta.
Ela lembra que teve receio de participar inicialmente, já que após a transição buscou firmar o nome como atriz. “ Eu tive que pagar arduamente o meu status de atriz. As pessoas tinham medo de contratar achando que era show de drag ”, explica.
A artista elogia a iniciativa de valorizar nomes antigos e misturar com talentos locais. “ Ele pega as drags antigas sendo convidadas e quando chega numa cidade, leva as drags locais também. Isso é lindo .”
Nany, porém, aponta uma crítica construtiva ao espetáculo. “ A única ressalva que eu faço, com olhar de diretora, é que quando chega na vez do convidado, o público já cansou de rir. Rir é que nem transar, uma hora cansa. ”
A atriz acredita que iniciativas como essa fortalecem o legado da arte drag. “ O Brasil é um país sem memória. Um amigo contou que a filha viu foto da Xuxa e não sabia quem era. Como vamos ser lembrados? ”, finaliza.