Influência e maternidade: até que ponto a superexposição é saudável?
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Influência e maternidade: até que ponto a superexposição é saudável?

Desde que a maternidade se tornou um nicho de produção de conteúdo para as redes sociais, a "receita do bolo" para aumentar o engajamento se tornou compartilhar o momento em família com os inúmeros seguidores. 

Passo 1 : ao descobrir a gravidez, a influenciadora já se organiza para fechar uma parceria paga com alguma marca de teste gestacional.

Passo 2 : fazer um evento de grande proporção para a descoberta do gênero do feto.

Passo 3 : criar uma conta nas plataformas com o nome da criança que ainda não nasceu.

Passo 4 : ao nascer, compartilhar os primeiros momentos de vida.

O esquema sintetiza a atitude da maioria das influenciadoras através do conteúdo de maternidade. Os pais, adultos, fazem com que desde o primeiro momento de existência o filho seja exposto para milhares de pessoas. E, é claro, a falta de privacidade não acaba com o nascimento do bebê. Os primeiros anos de vida são tão consumíveis quanto o período gestacional.

Virgínia Fonseca, que se destaca como referência em conteúdo de maternidade, virou refém da própria exposição. A influenciadora é mãe de Maria Alice, de 2 anos, e de Maria Flor, de 11 meses, ambas fruto do relacionamento com o sertanejo Zé Felipe.

Com quase 50 milhões de seguidores no Instagram, Virgínia seguiu a receita já mencionada, criou perfil para as filhas, fez eventos para promover a gestação e compartilhou todos os primeiros momentos.


Entretanto, uma das consequências da superexposição é a participação desagradável de alguns internautas. Algo que o influenciador não tem o controle.

Em outubro de 2022, após o nascimento de Maria Flor, o casal Virgínia e Zé Felipe decidiu expor o rostinho da filha para os milhões de seguidores. No entanto, eles foram surpreendidos com comentários negativos sobre a aparência da filha recém-nascida. Em um deles, uma mulher escreve: “Que criança feia essa Maria Flor, Deus que me perdoe”.

A publicação viralizou e também expôs pessoas que discordavam e concordavam com o comentário. Nos stories do Instagram, Virginia, que passava pelo puerpério, e o marido Zé Felipe apareceram abalados com a situação.

"O Zé Felipe tá 'p' da vida com uma mulher que falou que a Maria Flor é feia. Eu não vou mentir, também fiquei brava na hora, mas já passou a raiva. Eu entendi que uma pessoa para fazer um comentário desse tem que ser muito mal-amada. Não vou ficar com raiva. Eu tenho dó, e eu odeio esse sentimento de dó. Não gosto de sentir dó de ninguém. Eu vou abstrair, vou esquecer esse post dela. Mas o Zé Felipe tá possesso", declarou, na época.

A influenciadora Paloma Santos, conhecida como MC Loma, revelou durante a gestação da filha Melanie que não iria expor o genitor da criança, já que o homem não teria se disposto a assumir a paternidade. 

No entanto, desde o anúncio, a vontade da influenciadora é desrespeitada com inúmeros comentários questionando a identidade do genitor. Devido à situação, internautas passaram a apontar outros famosos que poderiam ser o pai da criança, gerando diversas confusões entre a mãe e outras pessoas que teriam sido envolvidas no caso, como Nakagima e Sté Viegas.

As redes sociais facilitaram a conexão entre familiares e amigos distantes e também serviu de acervo para registrar momentos importantes. Mas quando a maternidade vira um produto a ser consumido por outros usuários, a situação foge totalmente do controle parental. Então, até que ponto a superexposição é saudável para a criança? 

Fernanda Soibelman, psicologa e professora de pós-graduação em psicanálise, aponta um problema relacionado a superexposição dos filhos. “A criança não tem discernimento nem maturidade para lidar com o alcance e com as possíveis consequências da exposição da própria imagem nas redes sociais. Quem deve orientá-las no uso da internet de forma geral são os pais ou responsáveis. Uma vez postado, aquele conteúdo é exibido para um incontável número de pessoas e o uso que cada uma dessas pessoas vai fazer daquele conteúdo é impossível de ser previsto”.

A análise da psicologa exemplifica o caso da influenciadora  Morgana Secco, que viralizou após publicar um vídeo da filha Alice pronunciando palavras difíceis. Um vídeo fofo e inocente fez com que a brasileira que mora na Inglaterra condenasse o uso da imagem da filha indevidamente.

Após vídeos publicados nas redes sociais e um comercial realizado para uma empresa de grande porte, diversos internautas fizeram memes e figurinhas de WhatsApp com o rosto da pequena Alice.

“Depois de postado, não se tem mais controle sobre aquele conteúdo e ele estará disponível por muito tempo, gerando consequências mesmo depois de anos. É um registro que permanece ali, mesmo que a pessoa exclua a postagem, visto que qualquer um pode fazer um print e compartilhar indiscriminadamente”, enfatiza a psicologa e psicanalista Fernanda Soibelman.

Assim como adultos estão vulneráveis aos ataques na internet, crianças expostas pelos pais também sofrem com a perseguição virtual. Entretanto, a situação interfere diretamente na formação psíquica daquele menor.

“A exposição de crianças, em geral, ocorre num momento crucial do desenvolvimento em que elas ainda estão descobrindo e aprendendo a formar o conceito que elas têm de si próprias. Nós já sabemos o quanto os próprios adultos podem desenvolver uma dependência emocional por likes (que simbolizam uma aprovação social) e, no caso da exposição infantil, isso acontece em um momento em que a criança sequer tem recursos mentais para administrar toda essa atenção recebida e os comentários alheios aprovando ou reprovando a sua imagem”.

Fernanda também sinaliza outra situação que pode desencadear um trauma na criança. “A fama nas redes sociais pode ser efêmera e é preciso pensar no impacto emocional de virar uma celebridade num dia e no outro ser esquecida. Uma das possíveis consequências dessa superexposição pode ser o desenvolvimento de uma dependência exagerada por aprovação. E isso impacta diretamente a autoestima, sua preocupação com a aparência e seu senso de privacidade”.

Embora as redes sociais tenham promovido ferramentas que impulsionam exponencialmente a superexposição dos filhos, a dinâmica já era presente no entretenimento brasileiro desde os anos 90. A dupla de irmãos Sandy & Junior, que cresceu sob os holofotes devido à parceria musical e a fama da família, consegue descrever o trauma de ter a privacidade invadida.

"Eu comecei muito moleque, com seis anos, e você vai dar entrevista... Sempre vem os repórteres com uma maldade, uma malícia que eu e minha irmã não tínhamos, e a gente pagou caro por isso muitas vezes", disse Júnior, em participação ao Ilha de Barbados.

Os estigmas sociais criados por terceiros marcaram a juventude da dupla. "[Era chamado de] viado, minha irmã era a virgem do Brasil por causa de uma entrevista de vacilo”.

Em decorrência dos traumas da juventude, invadida muitas vezes, Sandy e Júnior decidiram por zelar a privacidade dos filhos. A cantora não expõe o rosto da criança e Júnior evita aparições públicas antes do herdeiro decidir se vai querer ter uma vida de famoso.

@andriellymendess.of MÃE TÁ BOM MINHA MAKE , OLHA A RESPOSTA DELA DEPOIS 😅😂 #andriellymendes #andrielly #andriellymendess ♬ som original - andriellymendess.of


Constrangimento, likes e violação…

Seguindo a dinâmica de influenciadoras gigantescas como Virgínia Fonseca, Bianca Andrade e Viih Tube, perfis menores também procuram espaço para a criação de conteúdo sobre maternidade.

Usuários de menor alcance tentam viralizar e alcançar relevância com a exposição dos filhos e da rotina. Entretanto, na busca pela audiência, esses perfis acabam sendo mais permissivos quanto à exposição das crianças.

Não é difícil encontrar no TikTok ou Twitter algum vídeo que ridicularize uma criança, ou então, a exponha num momento vexatório. A surpresa acontece quando percebe-se que o conteúdo foi publicado pelos próprios pais.

Cenas de desestabilização emocional, fases fisiológicas comuns, como xixi na cama, são exemplos de conteúdos que viralizam na internet e geram comoção negativa para a criança em questão.

“Quem gosta de ser ridicularizado ou exposto em uma situação vulnerável pela pessoa em quem mais confia no mundo e que deveria protegê-la? As pessoas costumam menosprezar as crianças e sua capacidade de entender o que acontece à sua volta. Por mais que a criança não lembre especificamente do que aconteceu ou não entenda plenamente, fica um registro de uma situação vivenciada com enorme desconforto e uma quebra de confiança nas figuras parentais”, explica a psicanalista Fernanda Soibelman.

A especialista aponta que os pais não devem tratar com descaso os sentimentos infantis, principalmente porque é na infância que a criança está formando a imagem que fará dela mesma no futuro e é importante que ela desenvolva autoconfiança e boa autoestima.

No TikTok, uma influenciadora compartilhou um momento de desestabilização emocional da filha de 2 anos, onde a criança aparece batendo na mãe. O vídeo, que usa elementos cômicos, já registra mais de 900 mil curtidas na plataforma. O engajamento foi tanto, que o conteúdo chegou provocando comentários absurdos no Twitter.

“Deus que me perdoe, mas ele ainda não me fez mãe porque eu daria uma bicuda fácil, fácil”, comentou um internauta, fazendo alusão para agredir uma criança de 2 anos.

“Tem que punir fisicamente. Umas chineladas moralizantes resolvem. Precisamos abandonar essa mentalidade de ‘crianças índigo’. Crianças não são unicórnios ou criaturas mágicas. Não têm gosto ou opinião, precisam de disciplina e educação”, escreveu outro rapaz.

Para Bruna Felix, psicopedagoga especializada em infância, os pais devem ser referência de segurança e proteção para a criança. “Expor vídeos de momentos de vulnerabilidade, sob qualquer pretexto, afeta diretamente a referência que a criança tem dos seus pais, resultando em uma quebra a confiança".

As crianças são invisibilizadas como seres humanos detentores de direitos e liberdades individuais. Muitas vezes, pais e responsáveis não entendem que aquele menor não é uma extensão das vontades deles. 


No Brasil, são registrados 673 casos de violência contra crianças de até 6 anos por dia, sendo que 84% dessas agressões têm pais, padrastos, madrastas ou avós como suspeitos, segundo dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, analisados em estudo produzido pelo comitê científico do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI).

Para a especialista em infância Bruna Felix, as crianças precisam de respeito, segurança, proteção e amor. Qualquer ação que não considere esses pontos, não beneficia a criança, pelo contrário.

Questionada se acha conteúdos de superexposição de crianças prejudicial, a especialista Bruna Felix responde que sim. “A Lei nº 8.069 de 13 de Julho de 1990 dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá providências. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.

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