Mente quem diz que Daniel de Oliveira é tímido. O mineiro, de 45 anos, adora contar histórias. Elas podem vir do início do Brasil emancipado, para onde se transportou ao viver o D. Pedro I imaginado por Luiz Fernando Carvalho em “Independências”, minissérie que reinventa a teledramaturgia da TV Cultura a partir de 7 de Setembro. Ou das entranhas do país — certa feita, encheu o tanque do carro com o equivalente ao valor de uma passagem aérea e passou seis dias em hotéis de beira de estrada, do Rio a Belém, abastecendo a alma. E ainda do país mais plural, que, profetiza, seus filhos Raul, de 14 anos, Moisés, 12 (os dois do casamento com Vanessa Giácomo) e Otto, 6 (com sua mulher há sete anos, Sophie Charlotte), irão desfrutar.
+ Entre no canal do iG Gente no Telegram
e fique por dentro de todas as notícias sobre celebridades, reality shows e muito mais!
Após dialogar por quase 25 anos com o espectador em novelas e minisséries premiadas, Daniel não assinou contrato com a TV Globo no ano passado. E proclamou sua independência, além da renovada parceria com Carvalho (iniciada em 2005 na inovadora “Hoje é dia de Maria”), com projetos em áreas diversas. Logo chega aos cinemas como protagonista do novo filme, ainda sem título, de Sérgio Machado, baseado em um conto de Milton Hatoum. Também abre um bar temático de seu Galo, em frente à arena do Atlético-MG, em Belo Horizonte, e lança o disco “Cinemúsica particular”, com a voz do Cazuza do cinema ao lado de nomes como Gal Costa, Milton Nascimento e Sophie.
É com a parceira de cena e vida que planeja realizar o projeto profissional dos sonhos dos dois. Mas este, assim como o Homem-Lama, “personagem da minha vida”, e sua temporada no Iraque, são outras prosas que o leitor encontra ao acompanhar parte de um bate-papo de quase duas horas:
Essa sua barba não é a de D. Pedro I, certo?
Não mais. Na última cena ele está acamado, morre novo, aos 36 anos, de tuberculose. Raspamos costeleta, barba, cabeça.
Inspirou-se em algum imperador do cinema ou TV?
O mais icônico é o do Tarcísio Meira (do filme “Independência ou morte”, lançado em 1972, na ditadura militar), né? Embora seja sempre referência, o dele é um Pedro heroico, o nosso é mais contraditório, menos ufanista. Foram cinco meses trabalhando corpo, sem texto. Falávamos todos (no elenco estão, entre outros, Antônio Fagundes, Gabriel Leone, Fafá de Belém, Margareth Menezes, Renato Borghi e Pedro Paulo Rangel) uma língua mítica, inventada no processo. Chegava algo do figurino, do Alexandre Herchcovitch, uma máscara, um tecido, e improvisávamos, mas sem a palavra. A preparação, no galpão do Luiz, em São Paulo, foi de outro mundo.
Voltar ao século XIX fez você repensar o Brasil?
Foi inevitável. Fiquei ainda mais sensível ao racismo estrutural. Veja o que aconteceu com o Bruno (Gagliasso) e a Giovanna (Ewbank), a importância da reação dela. Como tem gente que, a esta altura, ainda fala em meritocracia?
Você filmou com A Sophie na amazônia. Como funciona a parceria no trabalho?
É muito bom trabalhar com ela, uma pessoa espetacular de conviver, minha parceira de verdade. E grande atriz. Nos conhecemos em “O rebu” (micronovela, em 2014), depois fizemos (a série) “Os dias eram assim”, agora o filme do Sérgio. Damos pitaco no que o outro faz, trocamos em cena, é uma delícia. Somos loucos pela Amazônia e já tinha entrado no universo do Milton Haotum em “Órfãos do Eldorado” (filme de 2013, de Guilherme Coelho). Na ocasião, me perguntaram que voo queria pegar para Belém e falei, não, vou dirigindo...
Foi do Rio a Belém de carro?
Queria cruzar o país. Chamei o Roger Gobeth e o (fotógrafo) Daniel Chiacos. Sou fominha de carro, fui dirigindo. Eles, registrando. A produção me deu seis dias. Com o dinheiro das passagens enchemos o tanque e ficamos em hotéis de beira da estrada. Tava cabeludo e barbudo para o filme, mas era sempre uma festa quando era reconhecido. Passamos pelo Jalapão, e fiz o Homem-Lama para a galera de lá.
Criei a performance na preparação de “A festa da menina morta” (filme de 2008, de Matheus Nachtergaele), quando tínhamos de improvisar inspirados no butô. Às margens do Rio Negro, onde filmávamos, me imaginei tomando banho em uma panela de água limpa. Estava nu, coloquei duas paredes de tijolos e um lençol para ninguém me ver. Tinha papel higiênico, espelho, isqueiro, a lama do rio, e nada mais. Saí amarrado no lençol, como as mulheres fazem com as toalhas, pisando em galhos secos como se tivesse pagando penitência. Acendi o papel com isqueiro, pegou fogo e, quando me olhei no espelho, vi uma coisa...
Que coisa?
Uma velha. Um senhor-lama. No espelho, eu tinha duas cabeças. No chuveiro, depois, chorei pacas. “A festa da menina morta” é bonito demais, estava tomado pelo filme, e ali fiz uma descoberta preciosa: o Homem-Lama era o personagem da minha vida, nunca mais deixarei de fazê-lo. Fiz no Jalapão, na Serra do Cipó, na Amazônia, na Avenida Paulista.
É um personagem político?
Sim. Fico da cor do local em que estou. Na Paulista, comecei embaixo do Viaduto da Consolação, com as pessoas em situação de rua. Terminei me lavando onde algumas delas se banham, no Masp. E fiz na Samarco, em Bento Rodrigues, distrito de Mariana (MG), devastado por eles (no rompimento da barragem Fundão, em 2015, que ceifou 18 vidas). Lá, me cobri da lama de um barranco que não estava contaminado e de minério de ferro, me piniquei muito. Foi o Homem-Lama mais triste de todos. E fiz também no último dia de filmagens de “Independências”. Se bobear, o Luiz usa na série.
Seu filhos já viram o Homem-lama?
Sim. Uma vez na terra da minha avó, Suzana, em Pompéu (Norte de Minas), onde tem uma lama muito vermelha, cenário de brincadeiras minhas, quando criança, com meu cachorro, o Indiana Jones. Eu os convenci a passarem um pouco de lama comigo, me emocionei. “Pai, você é doido, né?”, me diziam (risos).
Em menos de um mês, iremos às urnas. Está esperançoso em um Brasil melhor para eles?
Estou. Desejo para eles um país que aceite sua própria diversidade. Para os meus meninos, explico que preconceito não passa de medo, insegurança e ignorância. O que fica é o amor, o oposto do que vivemos hoje, este elogio e prática do autoritarismo. Mas isso vai acabar. (O presidente Jair) Bolsonaro não cabe mais no Brasil.
A imagem de seu pai coberto em óleo na capa do disco é uma referência ao Homem-lama?
Sim! Minha madrinha morreu há sete meses e apareceu essa foto, me mandaram. Quando vi, quase caí para trás: seu Geraldo era um Homem-Óleo! Quando era criança, ele, que também já faleceu, tinha me contado sobre um banho de óleo de motor de avião, quando voou pela primeira vez, em Belo Horizonte, espécie de batismo, e que eu estava na barriga da minha mãe. Visualizava aquilo, mas nunca tinha visto a imagem.
Ao fundo, há uma casa branca com a palavra “despertar”...
Foi uma interferência minha. Está em uma das músicas, “Alma cicatriz”, canto “despertar agora jamais/despertar agora”. Era para a minha vida aquilo, inclusive a musical. Na pandemia, me agarrei à guitarra, fui aprender mais. Gaita também. Tenho quatro músicas com o Gabriel Leone. Uma com Sophie, Júlio Andrade e Elen Cunha, casal muito próximo.
O título vem de músicas que compus durante processos de filmagem. A primeira foi em “A festa da menina morta”. Saltei da cama de noite, fui para uma escrivaninha e anotei a letra inteira. Dormi e, no dia seguinte, veio a melodia. Fui mostrar para o Matheus, no Bar Joia, no Jardim Botânico, o que tinha sonhado no dia anterior. Ele: “sério, vai ter esse momento?” (risos). Aí, na Amazônia, já filmando, meu personagem, o Santinho, abençoava uma menina, e ele mudou na hora: “Daniel, não reza não, canta a música que você fez”. E ela entrou assim. Depois gravamos, e ela fecha o filme. E o Santinho tinha muito do meu pai ali, presente...
De que moda?
Ele se separou de minha mãe, Aurora, quando eu tinha 7 anos e foi trabalhar no Iraque, em obras de infraestrutura. Passei um ano lá. Numa apresentação de fim de ano dos empregados da empreiteira, ele viveu Jesus. Mostrei para o Matheus uma foto dele no papel, e ele: “seu pai vai ser o Cristo do filme”. Foi a referência de fé para o Santinho. Batia a cabeça para ele de manhã, para o meu pai. Depois, fui fazendo outras músicas em sets e cada diretor agora comandou um clipe de música que iremos lançar. Tem Carol Jabor com “Mulher infinita”, que fiz para Sophie, tem Jorge Furtado, tem até uma infantil, “Sou pirata”, que fizemos quando os meninos eram menores, e em que a Juju, filha da Leandra Leal, é a sereia. “Alma cicatriz” é de “Sangue azul”, com o Lírio (Ferreira, diretor do filme de 2014), estávamos em Fernando de Noronha, tinha me separado da Vanessa e saiu. E tem ainda Gal Costa e Milton Nascimento (em “Moça onça”), para quem, aliás, mostrei o Homem-Lama na Amazônia. Quando terminei, ele ficou em silêncio até soltar um “puta que o pariu!”. Me arrepiei.
A descoberta do cantar veio de “Cazuza”?
Também. O filme da Sandra (Werneck) me deu tanta coisa, inclusive a Lucinha (Araújo), que liberou “Pro dia nascer feliz” e “Blues da Piedade” para o disco.
Em uma das muitas declarações que faz para Sophie nas redes, você cita Doces Bárbaros com um “nossos planos são muito bons”. Têm um projeto profissional dos sonhos?
Coloco até pouca coisa! No Dia dos Pais, ela me fez uma surpresa linda, uma joia do (designer) André Lasmar com o cavalo-marinho seco que meu pai deixou em uma mala preta e só abri tempos depois. Um projeto é o bar temático do Galo que abrirei em Beagá, somos atleticanos fanáticos, meus filhos também, graças a Deus. E, o dos sonhos, com ela, Julio, Elen e amigos fotógrafos, é o “Palhaçada”, uma investigação dos mestres da palhaçaria. Falei com a Leandra Leal para nos dirigir, mas veio um “tá maluco? Quero é fazer!”, e ela engrossou o caldo. Agora é sincronizar as agendas. Ando, como você pode ver, numa animação só.