IstoÉ

Depois de Macunaíma, Agostinho Carrara seria certamente um dos personagens mais representativos do Brasil, capaz de traduzir o espírito nacional com sua falta de emprego, caráter e perspectivas. Quem o imortalizou na série "A Grande Família", na TV Viva , foi o ator Pedro Cardoso, de 56 anos.

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Pedro Cardoso lança livro sobre fascismo brasileiro
Reprodução
Pedro Cardoso lança livro sobre fascismo brasileiro

Pedro Cardoso tem orgulho do personagem, que acaba de ser indicado para ser protagonista do popular game de corrida GTA6, mas não vive dessa lembrança. Ele, que mora em Portugal, está agora em uma frutífera temporada no teatro do Shopping Morumbi, em São Paulo, onde, até outubro, encenará oito espetáculos ao lado da mulher, a atriz Graziella Moretto.

Acaba, também, de lançar o livro “Pedro Cardoso Eu#Mesmo Em busca de um diálogo contra o fascismo brasileiro”. Na obra, diz, entre outras coisas, que um comportamento e uma prática política de extrema direita tomaram o Estado e invadem a sociedade brasileira. “Ainda não há uma censura oficial no Brasil, mas já há uma censura econômica”, declarou em entrevista à ISTOÉ .

Que fascismo brasileiro é esse?

Não sei ao certo. O livro é justamente uma interrogação a respeito disso. E vi com grande susto a revelação do projeto messiânico que levou ao poder Jair Messias. Nunca imaginei que o Brasil tivesse, vamos dizer, no seu subterrâneo, uma possibilidade fascista tão evidente, compreendendo por fascismo aquele movimento que tem por desejo eliminar qualquer diferença, ou seja, um movimento que só admite a si mesmo como portador da verdade.

Quando o PT permaneceu apoiando Nicolas Maduro, que deu um golpe de Estado, revelou-se para mim um protofascismo dentro da própria esquerda brasileira.

Quais são as manifestações do governo e da sociedade que fazem você pensar nisso?

O desejo de eliminação do divergente. O Jair é um acidente, ele não é o criador desse movimento. Ele é o acidente histórico, a pessoa que estava ali, que, por suas características pessoais, era adequada a ser a face desse movimento fascista. Mas ele está longe de ser o teórico, o criador desse movimento, ele não tem nem capacidade intelectual para nada disso. Não é ele que me preocupa. O fundamental não é o líder, é o fascismo que está dentro da sociedade, dentro das relações sociais.

A sociedade apóia esse movimento autoritário?

Existem 47 milhões de pessoas que votaram nele, mas existem 80 milhões que não votaram. Então a minha perplexidade permanece. Acho importante dizer que meu susto com a presença do fascismo no Brasil não se restringe a esse que é o dominante, que é o de extrema direita.

Também me surpreendeu encontrar protofascismos na esquerda. Quando o PT, na minha opinião, permanece apoiando Nicolas Maduro, que deu um golpe de Estado, revelou-se para mim um protofascismo dentro da própria esquerda brasileira.

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O livro se baseia na sua experiência no Instagram. As mídias sociais promovem comportamentos extremos?

Entrei no Instagram com a mais absoluta ingenuidade a pedido de uma filha que tem a idade dessa geração que vive nisso. Fiz algumas publicações desinteressantes sobre fatos mundanos da minha vida, uma flor que achei bonita, uma árvore que plantei.

Até que teve um julgamento no STF e eu, afrontado pelo que estava sendo dito, publiquei um comentário a respeito. Recebi em resposta outros comentários. A partir dessa aproximação a um assunto de verdadeiro interesse coletivo, descobri que estava brincando de ser eu mesmo num campo de batalha onde se trava uma guerra de desinformação.

Você sofreu ataques? Foi vítima de discursos de ódio?

Alguns posts meus que tinham 3 mil comentários. Eu me esforçava em ler todos. E a imensa minoria era de pessoas absolutamente despreparadas para o mínimo de civilidade. E esses eu bloqueei imediatamente porque eu não me considerava obrigado a conversar com alguém na rede anti-social.

Como você vê o Brasil desde Portugal?

Não posso dizer que eu consiga ver o Brasil de fora porque, embora more em Portugal, a minha vida econômica é brasileira. O lugar onde trabalho e ganho dinheiro é o Brasil. Minha vida econômica em Portugal é muito tímida. Então quando acordo de manhã me interessa antes de qualquer coisa saber o que está acontecendo no Brasil.

Morar fora do Brasil é bom?

Agostinho (Pedro Cardoso)
Divulgação/TV Globo
Agostinho (Pedro Cardoso)

Vejo duas diferenças entre Brasil e Portugal. Uma é viver numa democracia intelectualmente mais bem organizada. Portugal é uma democracia que funciona melhor. Não que não haja desonestidade lá. Mas é muito menor do que no Brasil. A outra coisa que faz a máquina funcionar melhor é que existe como se fosse outro país por cima de Portugal, que é a União Européia. Os tribunais europeus vigiam os países membros.

O principal, porém, é a revolução cultural. Quando fui morar na Europa, tive que me reeducar quanto aos meus hábitos pessoais. Hoje sou uma pessoa que lava seu banheiro, corta sua própria grama, passeia com seu cachorro e lava, estende e passa sua roupa.

No Brasil, como uma pessoa de classe média, tinha fartura de serviços domésticos. Compreendo agora quanto aquilo me corrompia, o quanto me valer dessa circunstância social impedia que eu tivesse uma noção mais precisa da própria realidade.

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É uma herança da escravidão?

É uma permanência da escravidão através do salário. Então a grande mudança espiritual que aconteceu para mim, a grande mudança existencial foi ter que dar conta da minha vida. Eu gasto de duas a três horas de todos os dias da minha vida tratando de afazeres domésticos.

Quando olho para o Brasil dessa perspectiva, percebo que tudo que as classes médias e altas brasileiras fazem é para não abdicar desse privilégio. Os ricos brasileiros não aguentam um mês sem serviços domésticos.

A imagem emblemática para mim do movimento fascista de extrema direita é de um casal que foi numa passeata a favor de Jair Messias embrulhado na bandeira brasileira e a babá ao lado empurrava o carrinho. Essa é uma imagem que na Europa eu nunca vi.

Há também uma masculinidade tosca que parece acompanhar essa guinada autoritária?

Essa peça que está em cartaz chamada "O Homem Primitivo", que tem como protagonista uma empregada doméstica, é muito mais da Graziella Moretto do que minha. A compreensão do assunto é dela, não veio de mim. Vivia em grande alienação sobre esse assunto, a opressão do masculino sobre o feminino. E isso se exibe no trabalho doméstico.

Porque não há trabalho mais penoso do que o trabalho doméstico. Não há nenhum. Eu desafio qualquer pessoa a trocar o trabalho mais penoso que for pelo doméstico. Não sei explicar bem o porquê. Talvez porque o trabalho doméstico seja aquele mais ligado à fisicalidade da existência.

A cultura no Brasil está sofrendo um ataque?

Os artistas brasileiros, muitos de nós, têm mesmo uma compreensão marxista da realidade. Marx é um instrumento muito eficiente de compreensão da realidade. É muito mais do que o comunismo. Ele é um analista da história, é basicamente um historiador. A compreensão marxista da história coloca em cheque o privilégio dos ricos frente aos trabalhadores.

O movimento fascista, embora se anuncie como um movimento popular, que pretende libertar os pobres da sua pobreza, é no fundo uma manipulação de um grupo muito pequeno de pessoas que pretendem enriquecer elas mesmas. Esse grupo quer chegar ao poder para enriquecer.

Nós artistas somos o inimigo natural de todo projeto autoritário e de concentração de renda. Por isso fomos eleitos por esse grupo como inimigos prioritários, junto com professores e jornalistas. E o argumento que eles inventaram foi de que nós todos vivíamos da Lei Rouanet, o que é uma mentira facílima de provar. Eu desafio essas pessoas a mostrarem onde está a corrupção imensa que ele declararam ver na Lei Rouanet.

A censura está voltando?

Ainda não percebo uma máquina repressiva atuante, como censura oficial. Não há uma censura oficial, mas já há uma censura econômica. Essa administração vai tentar desidratar economicamente a vida cultural do País. Já está fazendo isso. E os artistas não são as celebridades. A maioria dos artistas não está empregada na televisão, vive de teatro com dois, três mil reais por mês.

Tem outra questão que você cita como um caminho para o fascismo: o fundamentalismo religioso.

Não é à toa esse fascismo atual se basear numa falsa religiosidade de charlatões que fundaram igrejas e fazem uma leitura absolutamente estapafúrdia da Bíblia. São cristãos, mas só falam do Antigo Testamento. Aí tem uma revelação da contradição absurda do que eles fazem. O sujeito se declara cristão e vai ler Isaias. Ora, Jesus Cristo é um reformador do pensamento judaico. Você não pode ser cristão e apoiar teologicamente sua fé no Antigo Testamento.

E o dinheiro está no meio também.

Tudo é para ganhar dinheiro, não há Deus para mim nisso. Basta olhar esses programas de televisão. Alguém acredita que alguém ali crê em Deus? E o slogan do movimento messiânico atual? Como Deus pode estar acima de tudo? Que Deus? Os deuses do candomblé estão acima de tudo? O Deus da Igreja Católica está acima de tudo? Qual é o Deus? É o Deus da pessoa.

Isso é uma ideia fascista em si mesma. Quando você propaga que Deus está acima de tudo você está sendo profundamente intolerante com qualquer pessoa que não creia no seu deus.

Hoje você vive de teatro? Como você compara seu trabalho atual com os tempos da Globo ?

Pedro Cardoso fala do seu tempo como Agostinho Carrara
Divulgação
Pedro Cardoso fala do seu tempo como Agostinho Carrara

Para mim é motivo de orgulho o Agostinho Carrara ter essa permanência no imaginário popular. Ele é um Macunaíma. Não tenho nenhum emprego. Trabalhei na Globo 35 anos. Vivo hoje como qualquer artista brasileiro vive: da bilheteria do teatro. Aqui eu tenho um patrocínio, sem Lei Rouanet , de 50 mil reais da Porto Seguro.

É um valor modesto, mas é muito útil. Não me queixo. Vivo com muito menos dinheiro do que quando tinha emprego na televisão, o que é natural também. Não é nada injusto. É algo que faz parte da vida. Durante muito tempo tive um emprego ótimo, mas já não tenho, não é uma coisa que aconteceu só comigo.

Gostava de trabalhar em televisão por duas razões: pelo fantástico poder de comunicação que ela tem – " A Grande Família " era assistida por 60 milhões de pessoas. E adorava o dinheiro que ganhava. Num mundo injusto ganhar dinheiro liberta você um pouco da injustiça.

E o Agostinho Carrara? O que você acha dele se tornar protagonista do game GTA6?

Para mim é motivo de muito orgulho e alegria esse personagem ter essa permanência no imaginário popular. Acho que se deve ao fato dele ser uma das possíveis encarnações de um arquétipo brasileiro muito bem escrito por Mario de Andrade .

Ele é um Macunaíma. Disse isso algumas vezes: é um herói sem caráter que pode assumir muitas características, até, possivelmente, a do jogo GTA6, que não conheço. Acho que o brasileiro se identifica com esse turbilhão existencial do Agostinho.

Como uma pessoa resolve sua vida econômica no Brasil? Não conheço ninguém que tenha uma resposta pacífica para isso. Ou você está atrelado a um grande negócio ou você vai passar muita dificuldade.

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