Linn da Quebrada vestia um confortável conjunto de moletom e ainda tinha os olhos apertados de quem acabara de acordar, quando surgiu do outro lado da câmera. Eram 10h de uma sexta-feira fria em São Paulo, e fazia apenas duas noites que a cantora, atriz, apresentadora e agora ex-BBB tinha reconquistado o benefício das oito horas de sono. “Demorei muito para conseguir dormir desde que deixei o ‘Big Brother Brasil’”, confidencia. “É tudo muito novo.”
+ Entre no canal do iG Gente no Telegram e fique por dentro de todas as notícias sobre celebridades, reality shows e muito mais!
Ela não esconde a frustração que sentiu ao ser a 12ª eliminada do reality da TV Globo, com 77,6% dos votos, numa edição em que apenas homens chegaram à final. “Quando cruzei a porta, bateu uma sensação de derrota. Lembro-me de chorar bastante e, enquanto deixava os Estúdios Globo num daqueles carrinhos, as pessoas diziam para eu ter força”, narra. A ficha, porém, começou a cair nos dias seguintes e, passado um mês, a experiência é apreciada com mais generosidade. “Agora, estou começando a me sentir mais forte. Seria histórico uma travesti vencedora, não só por mim, mas por todas nós. Por outro lado, seria egoísmo me apegar a essa sensação de derrota e não reconhecer os debates levantados. Conquistamos a possibilidade da humanização.”
O “Big Brother” tampouco foi ponto de partida para a moça, de 31 anos. Antes de chegar até um dos programas mais assistidos da TV aberta, Lina Pereira, que adotou o nome de Linn da Quebrada para criar uma persona ainda mais forte, já ganhou um Teddy Award de melhor documentário no Festival de Berlim com o longa “Bixa Travesty”. Também emocionou audiências ao interpretar Natasha na série “Segunda chamada”, e lotou shows com repertórios construídos ao longo de dois aclamados álbuns.
Agora, enquanto estuda as melhores maneiras de retomar a carreira, vivencia a dicotomia de ser ovacionada por onde passa e lidar com as manifestações de amor e ódio nas redes. “Depois que comecei a sair na rua, entendi o quanto era amada, o público me dá muito carinho. Mas, na internet, além do apoio, você recebe muito hate. Muitas pessoas nos violentam e nos ofendem.” Ódio que não vira intimidação. A seguir, Linn fala sobre as transformações no corpo, a vitória contra o câncer aos 23 anos, a importância da união entre todas as mulheres e o desejo de ser mãe.
Já conseguiu processar tudo o que aconteceu durante e depois do BBB?
Ainda estou entendendo. Por mais que tenha achado a minha saída prematura, quando recebo o amor do público, considero simbólico para todas as outras pessoas da nossa comunidade de trans e travestis. Também preciso me apresentar para um novo público (que a conheceu no reality show), porque boa parte não teve acesso a tudo o que fiz. Consequentemente, preciso me apresentar a mim mesma, porque sou outra. E isso tem sido fantástico.
Como foram os primeiros dias fora da casa?
A sensação da derrota se dilui conforme você ganha o mundo de novo. Então, me sinto muito feliz por isso. Mas fiquei triste nos primeiros dias por ter saído e ver as meninas saindo também, enquanto os meninos ficavam. Ainda fico confusa, mas essa configuração deles, na forma como se admiram e se fortalecem, faz com que avancem no jogo, lá dentro e aqui fora. Isso me faz pensar o quanto nós, o feminino, devemos aprimorar as nossas alianças e estabelecer redes de apoio, para que a gente possa jogar não só esse jogo, mas também hackeá-lo de outra forma.<
Você protagonizou uma das cenas mais emblemáticas ao beijar a Maria. Foi simbólico?
Acho importante até para pensarmos a relação entre o feminino e o quanto identidade de gênero não têm nada a ver com orientação sexual. Não é porque sou travesti que preciso voltar o meu desejo unicamente aos homens. Quando começamos a nos admirar e devolver afeto entre o feminino, isso também nos fortalece.
Qual lugar você ocupa dentro desse “feminino”?
Não acredito que exista a mulher, como um ser único que tem uma reprodução. Nós, travestis e mulheres trans, também somos uma singularidade dentro desse espectro do que é ser mulher. Isso, para mim, é importante porque diminui as nossas certezas, faz com que as dúvidas nos movimentem.
Correntes feministas pregam a separação entre mulheres trans e cis (aquelas que se identificam com o gênero atribuído no nascimento). O que acha?
Não quero muito falar sobre isso, porque também são violências que se estabelecem em relação ao nosso corpo. Tentam, mais uma vez, nos afastar e nos tirar do jogo, e não concordo. Prefiro me apegar à compreensão do feminino que se junta e se protege. Existem muitas feminilidades, não existe uma mulher. A identidade não está ligada a genital. Muito pelo contrário, né? As identidades se constroem na complexidade.
O que seu corpo significa para você?
Uma conquista, um território de aprendizado. Nunca acreditei que nasci no corpo errado. Pelo contrário. Sou completamente apaixonada por ele. O que o mundo me apontava como fraqueza, seja a minha negritude, seja o feminino, transformei em força.
Quando começou a vê-lo desta forma?
Não tenho esse olhar cisgênero, que dita os limites de onde começa e onde termina um corpo trans. Comecei minha transição objetiva aos 17 anos, mas antes disso meu corpo já estava se transformando. Amo olhar para o espelho e tentar entender quando me tornei a pessoa ali refletida. Quando coloquei o peito e me vi nua pela primeira vez, falei: “Como é chique ser eu!”. É curioso porque, no “BBB”, mesmo com o peito, ainda usavam o pronome masculino em relação a mim. Para o outro, parece que nunca vai ser o suficiente. Já pensei em aumentar a prótese e mudar alguma coisa no rosto, não por me sentir desconfortável ou querer chegar mais perto do que se entende como mulher, mas porque quero experimentar diferentes códigos. Tenho vontade de raspar a cabeça. Gosto de criar esses tensionamentos e perceber onde está o feminino no meu corpo, para mim e para o outro.
Muitas pessoas trans relatam dificuldades em se relacionar afetivamente por causa dos estigmas. Como você está em relação a isso?
Estou tão exposta para o mundo, que sinto receio de me expor para esse tipo de relação neste momento. Preciso, de alguma forma, me proteger e me conectar com a minha individualidade. Estou cuidando mais de mim para que, quando me sentir segura, possa me abrir para o sexo afetivamente.
Quando acontecer, será para homens e mulheres?
Não consigo prever. Venho de uma relação com outra travesti, antes de entrar na casa. Acho que o nosso desejo é múltiplo. O meu já foi muito voltado para os homens, e eram relações que me machucavam. Eles não necessariamente estavam interessados no meu bem-estar. É possível irrigar outras áreas afetivas e fazer com que o meu desejo cresça em outros lugares.
Tem vontade de ter filhos?
Quero adotar, mas vai levar um tempo, até que eu me estabilize financeiramente. Acho linda a possibilidade de crescer junto com uma criança. Já sonhei até que estava grávida.
Por falar em estabilidade financeira, já sabe quais serão os rumos da sua carreira?
Está uma confusão. São muitas oportunidades que sequer imaginei. Estou estudando todas, desde a publicidade ao artístico. Quero fazer clipes e continuar a minha história na música, mas também desejo atuar mais. Fazer uma novela seria chiquérrimo. Quero dar continuidade à carreira como apresentadora, amo entrevistar.
Nas suas falas, você sempre acaba lançando mão da ironia e do humor em algum momento. De onde vem isso?
O deboche sempre foi a minha maior arma. Eu o utilizo para rir junto. Serve para desarticular as violências que se voltam contra mim. Faço com que as pessoas riam não de mim, mas comigo.
Você Já foi testemunha de Jeová. Isso ainda diz algo sobre a sua personalidade?
As palavras tomaram uma proporção na minha vida e criaram muitos medos e traumas em relação a quem eu era, sobre a minha sexualidade e a forma como vivia o meu corpo. Criei uma sensação de culpa. Precisei criar novos sentidos de circular pelo mundo, e isso me distanciou um pouco da espiritualidade. Tudo vem se transformando agora, ao me aproximar do candomblé, que tem uma outra forma de me abraçar. Só posso acreditar em um Deus que também acredita em mim.
Falando em reaproximação, você reencontrou seu pai recentemente, mas o perdeu nessa semana em decorrência de um infarto.
Da última vez que encontrei o meu pai, ele me falou muito sobre a fé e sobre confiar. Quero guardar essa memória, assim como o seu sorriso e o apreço pela vida. Ele não foi presente, mas isso não fez com que eu criasse um rancor. Minha mãe e outras mulheres sempre estiveram ali por mim. Quando vou falar do meu pai, acabo falando da minha mãe. Isso não é um privilégio meu: acontece em diversas outras famílias em que os pais são ausentes e as mães criam seus filhos sozinhas.
Você enfrentou um câncer nos testículos aos 23 anos. Como foi essa experiência?
Foi materialmente simbólica, porque me aproximou do meu corpo. Me vi vulnerável, mas transformei aquela fragilidade em potência. O câncer me faz pensar que a minha vingança será envelhecer. Quero envelhecer. Quero viver. Quero continuar sentindo.