Quando Félix e Niko deram o primeiro (e tímido) beijo gay da TV aberta brasileira, na novela "Amor à Vida", muito se alardeou sobre a cena. Os mais conservadores chegaram a dizer que ela representava o início do fim. Já quando Clara deixou sua família e foi morar com a fotógrafa Marina, na novela "Em Família", o autor foi acusado de incentivar a destruição da família traidicional brasileira. Mas o fim do mundo para os conservadores foi mesmo quando Teresa e Estela deram um beijo lésbico de personagens da terceira idade em "Babilônia", e a cena foi um prato cheio para quem acusa a Globo de querer empurrar os personagens LGBT goela abaixo da audiência.
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Não raro, os autores sofrem ataques por incluírem papéis LGBT em suas tramas - em uma tentativa de diminuir a desinformação e os estigmas sobre personagens fora da heteronormatividade. As redes sociais, porém, mostram o contrário: discursos de ódio, reclamações, ataques aos atores. Para o publicitário e ativista da causa LGBT Vinicius Oziel, de 24 anos, há duas vertentes que mais incomodam nos diversos setores do público.
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"Para o LGBT, o grupo que eu faço parte, o que mais incomoda é que as emissoras nunca optam por usar atores LGBT para nos representar. É sempre o homem cis heterossexual branco. Na novela 'A Força do Querer', por exemplo, é uma mulher cis interpretando uma pessoa trans. Essa poderia ter sido uma boa oportunidade para dar espaço para um trans atuar", explicou. Já para quem é de fora do movimento, o publicitário acredita que isso se deve a um momento do País que ele classifica como sendo de retrocesso.
"Eu vejo que a população está tendo acesso a uma informação que antes não tinha acesso, quando a Rede Globo insere o personagem LGBT em todas as novelas, para dar representatividade, mas há pessoas que não tiveram ainda acesso a essas informações. Nisso, a gente consegue perceber que isso é um retrocesso", afirma.
Daniel Ribeiro, diretor do longa "Hoje Eu Quero Voltar Sozinho" (2014), também acredita que o público ainda é bastante conservador. Ainda mais quando se tratam de personagens fora do estereótipo que criou-se em torno dos integrantes do movimento. "O público ainda é muito conservador. Quando você constrói o personagem de uma forma que faz o espectador acompanhar a história e criar empatia pelo personagem, funciona. Quando você não constrói o personagem para o público antes ou de uma forma mais didática, muitas vezes tem a rejeição. O público hoje está mais acostumado com alguns personagens, e com outros, não. Jovem gay tem muitos. Quando a Fernanda Montegro foi lésbica, foi um choque. Depende muito do tipo de personagem, da novidade que traz para o público", explica.
O colunista da Folha de S.Paulo , Tony Goes compartilha da opinião de Ribeiro. "Quem causa incômodo é o gay bem resolvido, bem-sucedido, que não está nem aí para a homofobia. O gay caricato nunca incomodou, pelo contrário. Ele funcionava como um aviso: 'seja gay e sofra como esse personagem'", conta. O que, por sorte, está mudando: começam a surgir retratos positivos de personagens gays, como a Globo faz seguidamente em suas novelas, são a famosa “água mole em pedra dura": tanto bate até que fura. Não são a única maneira de reverter a opinião da sociedade, mas talvez sejam a mais importante que há no momento.
Redes sociais: ajudam ou atrapalham?
Se esses papéis são representados na TV desde o começo dos programas de entretenimento, por que só agora esses personagens passaram a incomodar? Para Oziel, a explicação é uma só: as redes sociais. Com a sua popularização, foi aberta uma verdadeira Caixa de Pandora quando o público percebeu que tinha voz e que tinha como ser ouvido sem ser pela mídia tradicional.
"Acredito que, quando as pessoas perceberam que tinham uma voz ativa ali dentro, todas as opiniões que ficavam mais escondidas, mais restritas aos assuntos de mesa de bar na sexta-feira, hoje são um pouco mais expostas. O incômodo sempre existiu, mas ele tem se intensificado, bem como sua exposição ao ver os LGBT na televisão", explica.
Representatividade importa
Goes também aproveita para explicar que a maior importância que esses personagens têm é o de acabar com a heteronormatividade. "Justamente para mostrar que gays, lésbicas e trans não caíram de outro planeta, mas são pessoas comuns, com os mesmos defeitos e qualidades de todo mundo. E que dá, sim, para ser gay, exercer sua sexualidade, ter sucesso na profissão e no amor, e ser feliz. Isto já está assimilado nas classes de maior poder aquisitivo e acesso à educação. Infelizmente, nas classe mais baixas, ainda é comum ouvirmos que é preferível ter filho bandido a filho viado", lamenta.
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Oziel também comenta sobre a importância da quebra dos paradigmas, que ocorre ao trazer esse assunto para a sala de estar das famílias - rompendo com os estereótipos. Apesar disso, ele não faz somente elogios à forma como o assunto está sendo exposto. Para ele, falta que o gay não seja o alívio cômico do núcleo ou o melhor amigo da mulher, mas sim, o protagonista da história. Além disso, falta espaço para os atores LGBT na interpretação desses papéis - o que garantiria mais visibilidade e empatia para a causa do que apenas retratar que o conceito de heteronormatividade não deveria existir. Contudo, não é válido desmerecer a luta dos autores brasileiros para inserir essas discussões no ambiente familiar.
"Não são a única maneira de reverter a opinião da sociedade, mas talvez sejam a mais importante que temos no momento. Também vale ressaltar o papel de programas como o da Fátima Bernardes (Globo), que debatem o assunto com frequência e mostram que todas as famílias têm membros LGBT. Isto é fundamental para que o gay que se sente isolado saiba que ele não está sozinho no mundo", corrobora o colunista.
Ribeiro também cita a importância de ajudar os mais jovens a se descobrirem - ao invés de acharem que há algo de errado com eles. "Esses papéis tem uma importância de criar referência para o LGBT e para quem se está se descobrindo. Como é um assunto tabu, muitas vezes, a pessoa não tem referências para aquilo que está sentindo. Adolescente não entende direito, e como se fala pouco sobre isso de forma direta, o cinema e o audiovisual cumprem esse papel educativo", ressalta.
Então, por que tanto preconceito?
O colunista arrisca que o preconceito vem do machismo, fruto da sociedade patriarcal em que vivemos, e que é difícil confrontar os espectadores dessa forma, em um assunto que era proibido, mas que o Brasil tem bastante sorte com seus autores - todos são simpáticos ao movimento. Oziel e Ribeiro colocam o preconceito na conta da desinformação e do senso comum, mas discordam sobre a forma que um personagem trans na Rede Globo está sendo retratado. O que não discordam, porém, é que falta aceitação por parte do público - não só para os personagens, mas para toda a comunidade LGBT. "Mas é claro que só as novelas não bastam. Falta, acima de tudo, educação", pontua.
Ribeiro ainda afirma que a televisão não deve se curvar à desaprovação do público. "Para mudar esse cenário de preconceito, devemos continuar produzindo conteúdo para continuar debatendo o assunto, combater a censura. É isso, não pode ter censura. Precisa da liberdade de expressão, da liberdade de criar os personagens", afirma.
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"Muitos dos que reclamam são perfeitos hipócritas: na vida pessoal não têm nada contra gays e lésbicas, mas atacam os LGBT da TV por que isto repercute em seu público-alvo (geralmente, os fiéis de suas igrejas). Dizem que gays são pedófilos e que discriminá-los seria 'proteger a família' (quando as estatísticas comprovam que a imensa maioria dos ataques de pedofilia são cometidos por homens hétero e dentro das próprias famílias das vítimas). Mas tem aqueles que se incomodam mesmo, e pela razão que eu citei acima. O personagem gay 'positivo' está mandando uma mensagem para a bichinha assustada do interior: 'você não precisa ter medo de ser o que é, veja só como eu me dei bem'. Isto é uma mensagem subversiva, que vira de cabeça para baixo a ordem machista e patriarcal em que vivemos", finaliza Goes.