IstoÉ

A escravidão é assunto da moda há uma década. Pesquisas e livros abordam aspectos inéditos em torno de revoltas, movimentos sociais e biografias de carrascos e heróis da resistência negra. Esses trabalhos tornaram óbvio que a escravidão estruturou a cultura, a identidade e a economia nacionais. Mas a fragmentação dos estudos ajudou na proliferação de mal-entendidos e mistificações. Para compreender o tema, o jornalista paranaense Laurentino Gomes deu início há dez anos à missão de escrever “a primeira história geral da escravidão”, como define.

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“No Brasil, os negros foram tratados com crueldade. Onde há escravidão, há violência” Laurentino Gomes, jornalista, em foto no porto de Luanda
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“No Brasil, os negros foram tratados com crueldade. Onde há escravidão, há violência” Laurentino Gomes, jornalista, em foto no porto de Luanda

Gomes é autor de três títulos de sucesso sobre a história do Brasil: “1808”, sobre a fuga da família real portuguesa para o Brasil; “1822”, cobrindo a Independência do Brasil; e “1889”, com a Proclamação da República. Eram textos de divulgação e contextualização, repletos de curiosidades. “Quando refleti sobre a chave explicativa para o Brasil, concluí que ela se ocultava na escravidão”, diz Laurentino Gomes à ISTOÉ. “Ela define o Brasil ainda hoje.”

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Para projetar a nova obra, ele viajou por três continentes em busca de lugares, arquivos e fontes. O resultado deve se materializar em três volumes, cujo primeiro acaba de ser lançado: “Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal à morte de Zumbi dos Palmares”, lançamento da Globo Livros.

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"Escravidão"

O livro demonstra que o tráfico de 12,5 milhões de cativos da África para a América durante 350 anos forneceu mão de obra para o primeiro empreendimento mundial, impulsionado pela produção de açúcar e a extração de ouro. Para seu sucesso, contou com o tráfico negreiro, intermediado por nobres, negociantes e religiosos.

Entre os mitos que o livro derruba é o da escravidão como umbilicalmente ligada aos africanos. Segundo Gomes, o maior número de cativos até o século XVII era formado por caucasianos, devido ao Império Otomano, que privilegiava escravos brancos de olhos azuis, vindos dos países eslavos (o termo “escravo” deriva de “eslavo”). “A banalização do negro escravizado foi invenção do europeu”, diz Gomes.

Sexo entre raças

Para batizar os africanos “desalmados” e lucrar com sua venda, os jesuítas mantinham feitorias em Angola, de onde partiam o maior número de navios negreiros. Em carta à Companhia de Jesus, em 1549, o padre Manuel da Nóbrega, fundador de São Paulo, solicita o envio de mais escravas ao Colégio, “porque as fêmeas fazem a farinha, e todos os principais serviços e trabalhos são delas”.

Antônio Vieira proferiu um sermão na Bahia, em 1633, para catequizar os africanos sobre a beatitude dos trabalhos forçados: “Oh, se a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus, e a sua Santíssima Mãe, por este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre!” Não há notícia de que os presentes se convenceram. Afinal, naquele tempo, os fiéis convertidos iam à missa com manilhas de cobre e correntes de ferro, como se participassem de um cortejo rumo ao navio negreiro.

Por isso, outro mito que cai é o da benevolência da escravidão no Brasil, o país que “acolheu” o maior número de escravos de 1535 a 1867: mais de 5 milhões. Daí deriva outro mito, divulgado pelos historiadores de esquerda de que houve confrontos entre escravos e senhores. “Houve mobilidade social por meio de alforria e sexo inter-racial muito maior que nos Estados Unidos”, afirma Gomes. Mais uma lenda militante diz respeito aoo heroísmo de Zumbi dos Palmares. “Há três versões sobre Zumbi: o nacionalista, o líder revolucionário e o filho gay de Ganga Zumba – esta talvez seja a mais fiel”, afirma Gomes. São construções simbólicas que justificam erros e incentivam movimentos políticos.

Campeões do tráfico para a América
"Escravidão" de Laurentino Gomes
Campeões do tráfico para a América

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“Escravidão” deverá atingir 1.500 páginas. O segundo volume está agendado para daqui a um ano e trata do auge do tráfico, motivado pela febre do ouro em Minas Gerais. O terceiro e último, a sair em 2021, vai tratar do tráfico ilegal, o movimento abolicionista e o encerramento da escravatura — um final pró-forma, porque ela segue sangrando até hoje. “O Brasil tem de enfrentar o racismo a sério se quiser se tornar um país decente”, diz. “Até hoje, fechou os olhos para a escravidão para esconder a culpa.”

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