Quando o Rio de Janeiro ainda servia como capital do Brasil, no começo do século XX, o país se erguia como uma República e a cidade passava por uma modernização com vista a deixá-la parecida com grandes capitais europeia, principalmente a francesa. Foi assim que, em meio a outros empreendimentos, surgiu em 1909 o Theatro Municipal.
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Pouco mais de 20 anos depois, o Theatro Municipal já ganhava sua primeira reforma, com o intuito de aumentar sua capacidade. Mas foi após a 2ª Guerra Mundial que o patrimônio carioca viu sua popularidade e importância crescer: “Grandes artistas passaram por ele. Foi uma época muito rica”, explica Leonardo Marques, crítico de música e ópera do Portal Movimento.
Leonardo conta que, por conta da destruição europeia, os artistas buscavam novos palcos para se apresentar, e acabaram incluindo a América do Sul, especialmente o Rio de Janeiro e o Brasil em sua rota. Ele cita nomes como as sopranos Maria Callas, Renata Tebaldi e o compositor Pietro Mascagni como destaques que passaram pelo Municipal.
Marques acredita que, entre os teatros brasileiros, o Municipal do Rio de Janeiro é o mais tradicional justamente por conta de sua história e dos nomes que por ele passaram. A partir dos anos 1980, o Theatro Municipal ainda aumenta sua popularidade na figura de Ana Botafogo, hoje conhecida como uma das maiores bailarinas do Brasil.
Tempos difíceis
Apesar do prestígio, o Theatro chegou ao século XXI em má fase. O orçamento começou a ficar escasso, e as programações anuais passaram a não ser cumpridas em sua totalidade. Para João Luiz Sampaio, jornalista, colunista do Estadão e editor-executivo da Revista Concerto, é a escolha inadequada de administradores que atrapalha a instituição. Ele acredita que esses cargos devem ser ocupados por nomes envolvidos com a área artística: “O Theatro Municipal é música clássica, ópera e balé e tem pessoas que não são dessa área assumindo”, comenta.
A cineasta Carla Camurati foi quem passou mais tempo a frente da administração nas últimas duas décadas. Ela foi Presidente durante o Governo de Sérgio Cabral e ficou na função entre 2007 e 2014. Apesar de oferecer continuidade para os projetos, coisa que ficou mais rara desde sua saída, sua posição foi muito criticada, justamente por não ser um nome envolvido no meio de música clássica.
O próprio Marques, em 2014, fez duras críticas a sua atuação: “Nesses sete anos em que Carla Camurati está à frente do Municipal, o que menos se viu no nobre palco da Cinelândia foram óperas completas e encenadas”, escreveu na época, comparando a programação com a de outros teatros como o Cólon na Argentina e o de Santiago, no Chile.
Depois dela, porém, outros seis nomes ocuparam o cargo, e a programação foi cada vez mais afetada. “Essa falta de continuidade na administração faz com que o teatro perca credibilidade”, acredita Marques. Nos últimos anos, a maior parte da programação anunciada não foi realizada por falta de verba, afetando ainda mais a imagem do Municipal.
Chegando a 2019, quem assumiu a presidência foi Aldo Mussi, sob a administração de Wilson Witzel. “A partir deste ano percebo que o presidente vem tentando fazer alguma coisa positiva, dar uma programação minimamente aceitável”, acredita Leonardo. Embora o programa anunciado ainda não seja o mesmo dos tempos áureos, o Municipal conseguiu realizar todas as peças anunciadas. Ainda assim, o segundo semestre é uma incógnita, e só em dezembro será possível verificar se a nova administração conseguirá melhorar sua imagem.
De acordo com Leonardo, historicamente, o Municipal cumpre com o programa no primeiro semestre, mas não no segundo. Ainda assim, ele elogia o que foi feito até agora: “considerando essa primeira parte (do programa) fizeram o que deu pra fazer e divulgaram uma temporada interessante: um balé da escola de balé, duas óperas em forma de concerto e uma ópera encenada”, explica.
Política
“O grande problema do teatro é que ele depende dos ventos da política”, comenta Leonardo. O Municipal é controlado por uma Fundação que é vinculada ao Governo do Estado do Rio de Janeiro. Sendo assim, a estrutura administrativa muda a cada governo, que tenta esquecer os feitos anteriores e começa um novo projeto. “Começam do zero por pura vaidade”, acredita.
De acordo com o deputado estadual Eliomar Coelho (PSOL) a Fundação é responsável por escolher cargos chave na administração do teatro, como tesoureiro, e outras funções administrativas. Coelho é Presidente da Comissão de Cultura instalada na Alerj, que em maio viu metade do orçamento dedicado ao Theatro ser bloqueado pelo GOverno do Estado em audiência pública.
“Na audiência que fizemos houve a representação de todas as atividades do teatro, coro, músicos, balé. Eles fizeram uma lista de reivindicações para que o teatro pudesse funcionar de forma normal. (O teatro) está praticamente sem manutenção. O dinheiro que existia já era reduzidíssimo para garantir as atividades programadas. Cortar 50% é praticamente acabar com as atividades do Municipal”, afirma o deputado.
O Theatro Municipal já conta com três corpos artísticos fixos, que são pagos pelo governo: orquestra, coro e balé. Mas além disso, é necessário verba para figurino, cenário e artistas complementares.
João explica que existem duas verbas: uma destinada a pagar funcionários, músicos, técnicos, camareiras, bailarinos, seguranças, e outra para programação, que permite, por exemplo, convidar um regente diferente para o concerto, ou para figurino.“Se o salário dessas pessoas já é pago regularmente, elas tem que se apresentar. Tem que se criar alguma estratégia para que o teatro funcione”, complementa Marques.
Os próximos 110 anos
“A alma do teatro são seus corpos artísticos. A alma do teatro é aquilo que ele pode produzir”, acredita João. Se o Theatro não tem o prestígio de antes é porque sua administração não deixa claro a importância dos trabalhos apresentados lá para a cultura nacional. Nos seus 110 anos, esse corpo claramente não tem a mesma atenção de outros tempos. “O legado (do Theatro) é negativo”, acredita o deputado Eliomar. “Esse teatro já expôs nosso país para fora através de programações de alto nível”, completa.
O futuro desse patrimônio está, justamente, em voltar a investir e apoiar tantos talentos artísticos que a ele se dedicam. Só na orquestra o Municipal conta com 114 instrumentistas, de acordo com o site oficial. Além disso ainda há o elenco de coro e balé. “Para um teatro que já foi o maior da América latina, chega aos 110 anos num momento muito ruim”, acredita João Luiz.
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“Não há nenhum tipo de garantia ou compromisso do poder público de que o teatro é uma prioridade. Além da boa vontade, não existe nenhuma perspectiva de que o Theatro Municipal está saindo desse período difícil”, conclui.