Quem tem dúvidas do vigor do cinema independente brasileiro precisa assistir “Lembro Mais dos Corvos”, um filme testamento de uma atriz maiúscula que sabe se fazer vulnerável, mas também se impor diante do olhar da audiência. A atriz em questão é Julia Katharine, mulher trans que abre o filme de Gustavo Vinagre lembrando da relação abusiva que teve com um tio avô quando tinha menos de dez anos de idade. “Ele foi o primeiro a me ver como menina”, relembra com afeto inconvicto.
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É um relato difícil, que Julia observa estar “com dificuldades para entrar na história” mais de uma vez e um posicionamento corajoso de um filme que pretende desmistificar a mulher trans, mas que não deixa de objetifica-la para fazê-lo. Julia é uma mulher–objeto, mas não necessariamente por ser uma mulher trans, algo que fica claro para a audiência pelas escolhas de Vinagre e pela própria abertura de “ Lembro Mais dos Corvos ”, que evita que esse relato em particular defina sua personagem.
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A flor do meu segredo
O filme se notabiliza por ser em 1ª pessoa, há intervenções pontuais da realização para recompor o raciocínio da personagem, e pelo espaço dado ao improviso. Essa linha afrouxada favorece uma dinâmica entre a ficção e o documental. A cinefilia de Julia é algo que chama a atenção. A própria admite que a descoberta do cinema a ajudou a lidar com a depressão.
“Quero ser diretora”, observa Julia em um dado momento, “e só vou fazer comédias românticas para compensar toda a minha carência afetiva”. Curiosamente, o curta “Tea for Two”, seu primeiro trabalho como diretora e que acompanha o filme em seu lançamento comercial, não é uma comédia romântica. Em outro momento, a atriz diz que até tentou, “mas que não conseguiria ser puta” pois se apaixona rápido demais”.
Julia Katharine se expõe com coragem e desprendimento e sua capacidade de raciocínio e de se autoanalisar não só encantam o público como contribuem para que a experiência proposta pelo filme, e o debate intrínseco a ela, sejam mais avolumados e perenes.
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“Lembro mais dos Corvos” é um filme que recebe a tristeza e as frustrações com ternura, que olha para o sexo com genuíno esforço de compreensão e que encontra em uma mulher que “só quer fazer filmes para ganhar prêmios ” uma figura apaixonante.