A presença de cineastas negros no dito cinema mainstream tem aumentado nos últimos anos. Se ela ainda não é equiparável a de diretores brancos, por uma série de fatores subscritos ao cinema, mas também extemporâneos a ele, já é qualificada o bastante para entregar os melhores e mais complexos filmes de 2018.
Tudo começou lá em fevereiro quando “Pantera Negra” foi lançado e virou uma febre que arrecadou mais de US$ 1,3 bilhão. Dirigido por Ryan Googler, dos ótimos “Creed” (2015) e “Fruitvalle Station: A Última Parada” (2013), o filme é apontado como um dos melhores do ano e citado como o primeiro de super-herói que pode receber uma indicação ao Oscar de melhor filme sem que isso soe forçado. Foi o primeiro filme da Marvel dirigido por um cineasta negro e não só foi um hit, como foi aclamado pela crítica.
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Em maio, Spike Lee levou o Grande Prêmio do Júri com “Infiltrado na Klan”, que estreou há duas semanas no Brasil e é considerado pela crítica o melhor de Lee, um expoente do cinema ativista, desde “A Última Noite” (2002).
Se em “Pantera Negra”, Coogler, que é um cineasta vigoroso, consegue fazer do conflito entre os príncipes T´Challa (Chadwick Boseman) e Killmonger (Michael B. Jordan) um espelho das ideologias de Martin Luther King e Malcom X, Lee, que costuma se debruçar sobre as tensões raciais na América recorrentemente, o faz por um ponto de vista essencialmente novo. Ele recorre a uma história extraordinariamente real, de um detetive negro que se infiltrou no grupo supremacista branco Ku Klus Klan para teorizar a respeito dos ciclos de ódio.
Assim como “Pantera Negra” não é um filme de super-herói banal, ainda que reúna todos os predicados para tanto, “Infiltrado na Klan” não é um thriller policial sem ambições divagativas e associativas. Lee raramente fez tão bom uso do humor e das caricaturas como o faz aqui e entrega um dos filmes mais inteligentes, narrativamente sofisticados e comerciais de sua carreira – e também da temporada.
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A maneira de contar uma história
O escultor e cineasta britânico Steve McQueen é um esteta de mão cheia, como demonstram seus primeiros longas “Hunger” (2008) e “Shame” (2011), ambos com Michael Fassbender. Seu primeiro filme por um grande estúdio veio só em 2018, bem depois do Oscar conquistado por “12 Anos de escravidão” (2013), e “As Viúvas”, lançado na última quinta-feira (29) nos cinemas brasileiros, é um filme de gênero, mas não somente isso. Nas mãos de McQueen esse filme não renuncia suas pretensões comerciais, mas embarca tantas outras como agenda de empoderamento, comentário sutil sobre racismo e tensões raciais, retrato da estrutura corrupta que pavimenta corridas eleitorais, entre outras coisas.
O filme de Steve McQueen ratifica a disposição de estúdios em apostar em produções comerciais mais arejadas, mas o cineasta leva essa orientação a outro patamar ao inverter as prioridades narrativas do filme de assalto. O plano e o ato em si servem menos do que as personagens e acabam reconfigurados como um monumento de empoderamento.
“As Viúvas” é o filme com aspirações comerciais mais ousado da temporada e ganha mais destaque ainda por ser protagonizado por mulheres e dirigido por um negro. É um dado extremamente significativo em um momento de afirmação como o que o cinema atravessa.
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Na próxima quinta-feira (6) estreia “O Ódio que Você Semeia”, que assim como “Infiltrado na Klan”, aborda as tensões raciais, mas o faz do ponto de vista de uma adolescente negra que testemunha o assassinato de seu amigo em um caso de brutalidade policial.
O longa de George Tillman Jr. aponta o dedo para o racismo institucionalizado nos EUA e o faz com uma eloquência ímpar. Não à toa, atraiu algumas vozes que se notabilizam na cena cultural negra americana como Common, Anthony Mackie e Issa Rae, todos com bons personagens coadjuvantes na trama.
Marcado para estrear no Brasil em janeiro, “Se a Rua Beale Falasse” é o primeiro filme de Barry Jenkins após conquistar o Oscar por “Moonlight: Sob a Luz do Luar”. Na trama, uma mulher grávida precisa enfrentar esse mesmo sistema viciado para provar a inocência de seu marido, acusado de um crime que não cometeu.
Tanto em “Se a Rua Beale Falasse” como em “O Ódio que Você Semeia”, o amor é protagonista em tramas marcadas pelo ódio, fúria e injustiça social. São filmes que parecem compreender tanto a necessidade do cinema, como da humanidade.
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Ryan Coogler, Spike Lee, Steve McQueen, George Tillman Jr. e Barry Jenkins lideram uma frente composta, ainda, por figuras como Ava Duvernay (“Uma Dobra no Tempo”), Tyler Perry (“Acrimônia”), Antoine Fuqua (“O Protetor 2”), Boots Riley (“Sorry to Bother You”), Idris Elba (“Yardie”) e Mariama Diallo (“Hair Wolf”) que vem reclamar com talento e obstinação o espaço dos cineastas negros na indústria.