Palco de debates, Twitter enseja novos desafios ao jornalismo cultural
Com o jornalismo em crise, Twitter vira referência para pautas culturais, mas exige apuração do jornalismo para além dos 280 caracteres
Há 20 anos a internet começava a ganhar espaço nas redações, mas nem o Google, muito menos as redes sociais, serviam como fonte de pesquisa para reportagens. Ao longo de duas décadas, muita coisa evoluiu e já ficou óbvio que ignorar as redes é nadar contra a corrente. O jornalismo cultural, assim como outras áreas, sofreu enormes transformações, mas a principal delas, talvez, tenha sido a proximidade com suas fontes via redes sociais.
Filmes e discos eram lançados no Brasil com meses de atraso das datas americanas e europeias. Publicações que traziam entrevistas e fatos sobre eventos culturais também. Esses fatores tornavam a produção de jornalismo cultural muito mais lenta. Hoje, quando um artista anuncia o lançamento de seu novo álbum no Twitter , aqui no Brasil, nos EUA ou onde quer que seja, a informação chega ao mesmo tempo.
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Essa realidade renovou, agilizou e por vezes aprimorou a produção de conteúdo. “As redes sociais funcionam como termômetro de repercussão com o público. Quando há um grupo de pessoas que comenta sobre determinado evento, artista, e mais, compartilha suas criações, é sinal de que, muitas vezes, o tema é agradável”, explica Aurora Seles, jornalista e professora de jornalismo cultural no Senac.
A rede vira uma nova referência sobre quais temas culturais estão em alta e merecem destaque, mas seu uso também desfez alguns limites. A relação internet x jornalismo vive uma grande encruzilhada de maneira geral, em parte justamente por conta dessa agilidade no compartilhamento de informações (que podem ou não ser verdadeiras) e das próprias redes sociais. Mas existe ainda outro conceito, que nesse segmento do jornalismo gera uma nova categoria: a rede social como pauta para a informação.
Jornalismo cultural ou de rede social?
Em julho de 2018 começaram a pipocar na internet tuítes do diretor James Gunn escritos em 2009 com piadas, entre outras coisas, sobre pedofilia. Em poucas horas a situação cresceu de maneira assustadora e dias depois ele já havia sido oficialmente demitido da Disney , mesmo já confirmado na direção do terceiro “Guardiões da Galáxia”. Nesse caso, o Twitter é a própria notícia.
“A notícia estará atrelada ao fato em si exposto. A notícia ali foi mostrar contrassenso no comportamento do artista”, continua a jornalista. Para Aurora, o tema é assunto justamente porque reflete uma opinião do passado que, nos dias de hoje, parece inconcebível pelo artista.
Nesse caso, a internet vestiu sua capa de juíza impiedosa e fez o que achava que tinha que fazer: teceu um julgamento público do diretor. No entanto, o jornalismo não deve cair na mesma armadilha. Além dos preceitos básicos de falar com os envolvidos, é necessário abordar o tema (esse ou qualquer outro) de maneira aprofundada. Não houve uma tentativa de analisar se o comportamento era injusto/justo, ou contextualizar o período, nem nada do gênero, pelo menos não inicialmente.
A rede costuma ser palco de muitos debates, sejam eles políticos, sociais ou culturais. Como consequência, esses questionamentos são replicados pela imprensa. Mas, mais do que isso, esses temas levantados devem ser aprofundados. “Expandir cultura, em tempo real, valoriza muito o segmento. Por outro lado, tudo depende da postura das redações. As opiniões das redes não podem ser a única fonte: a entrevista, a pesquisa, as contextualizações e o relato das histórias têm que complementar a repercussão gerada na internet”, comenta Aurora.
Você viu?
O outro lado
Assim como o Twitter pode colocar a carreira de uma pessoa em teste, ele também pode ser uma ferramenta de mudança. Há anos se fala, por exemplo, da falta de representatividade no Oscar. A pauta em si não é nova, mas nunca passou de mero comentário de rodapé. Depois da divulgação dos indicados ao Oscar de 2016 somente com atores brancos nas categorias, a advogada e ativista April Reign iniciou a hashtag “ Oscar So White ” (Oscar tão branco).
O que começou como um viral na internet se transformou em uma longa – e ainda pertinente -discussão sobre representatividade em Hollywood. Ao contrário do caso de Gunn (e outros artistas que tiveram o passado desenterrado no Twitter), a hashtag de Reign causou um verdadeiro impacto na cultura.
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A Academia decidiu ampliar o número de membros e buscou por votantes de diversas etnias nas variadas áreas que a premiação cobre – desde produção até efeitos visuais. A iniciativa pode não colher frutos imediatos, mas há de transformar o panorama gradativamente nos próximos anos. E esses apontamentos surgiram no Twitter e foram desdobrados pela mídia depois.
A democracia na internet
Você está circulando pelas redes sociais. De repente, se depara com dois artistas negros cantando no metrô de Nova York. Quando dá play no vídeo, os ouve cantando Beatles. O nome da banda é Blac Rabbit e, apesar de não ter projeção mundial, a banda foi de fazer covers no metrô para uma turnê que termina nos EUA agora em novembro e segue para a Europa.
Existem muitos outros exemplos de artistas que conquistaram a internet e, consequentemente a mídia. A internet é democrática e, apesar de estar cheia de opções, permite que artistas independentes sejam vistos sem precisar de uma gravadora por trás para promovê-los. Também nos colocar a cliques de distância de outras culturas, novos talentos e conceitos diferentes. Está tudo lá, na internet.
E parte dessa curadoria deve ser feita pelo jornalismo. É fato que a informação está na internet e negar ou evitar isso só mostra retrocesso. Mas só porque está no Twitter não significa que é a versão absoluta do fato. Afinal, 280 caracteres cobrem qualquer assunto de maneira superficial.
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Se o Twitter serve como fonte para o jornalismo cultural , ele é apenas a ponta, o lide, a chamada. Cabe aos profissionais compreender que, por mais pertinentes que sejam os comentários explorados na rede, eles não são suficientes e merecem mais do que 280 caracteres.