O cenário de “Legalize Já” é uma Lapa sem cor e abandonada no Rio de Janeiro no início dos anos 1990. A democracia era frágil e o brasileiro via um País em recessão depois da criação do Plano Collor e do impeachment do então presidente.
Soma-se a efervescência política retratada no filme com o momento atual, e “ Legalize Já ” ganha ares políticos, mesmo sendo essencialmente um filme sobre música e amizade. O longa conta a história de Skunk (Ícaro Silva) e Marcelo (Renato Góes), que juntos formariam o Planet Hemp .
Leia também: “Legalize Já” faz belo retrato da amizade de D2 e Skunk antes do Planet Hemp
O filme, porém, foca na história anterior ao lançamento de “Usuário” em 1995, quando Skunk inclusive já havia falecido. Os dois jovens viviam na marginalidade carioca, em algum lugar entre as favelas e as praias. E, embora a maconha tenha sido um tema recorrente durante a carreira do grupo, não é objetivo do filme pregar a legalização ou repressão de nada.
“A maconha foi um tema encontrado pelo Marcelo e pelo Skunk como uma maneira de dizer ‘a gente pode falar o que quiser falar’”, explica um dos diretores, Gustavo Bonafé. Seu companheiro na direção, Johnny Araújo completa: “se a gente parar para pensar, as letras do Planet são muito mais políticas do que sobre maconha”.
Legalize Já, que causaria a prisão dos integrantes do Planet Hemp anos depois por apologia, no filme representa justamente essa liberdade que os dois rapazes não conseguem alcançar, sempre vivendo no limite, ganhando para comprar comida, sem perspectiva de futuro. “O exemplo que o filme dá de liberdade, pelo andar da carruagem, talvez deixe de ser possível. Vamos torcer para que as coisas melhorem” comenta Gustavo se referindo ao cenário atual.
O momento político está presente a todo momento na conversa do elenco sobre o filme. Marina Provenzzano, que faz a namorada de Marcelo no filme, Sônia, comenta sobre o título do filme: “é legalize já a vida, legalize já a maconha, o aborto, o amor, os direitos dos corpos poderem ir e vir”.
No filme, Sônia vive um conflito enfrentado por muitas mulheres na vida real: grávida, ela tenta reunir dinheiro para fazer um aborto em uma clínica ilegal. “Ela poderia ter sido uma das muitas mulheres que morrem porque a questão é se isso vai virar um tema de saúde publica ou não".
O produtor Paulo Roberto Schmidt comentou que houve certa dificuldade em financiar o filme, já que muitas pessoas acreditavam que o nome faria apologia ao uso de drogas. Talvez por isso o filme tenha se chamado “Anjos da Lapa” por um período. Mas o uso da droga não chega a ser uma questão no filme, que opta por conflitos reais, como a pobreza, o racismo, a saúde de Skunk que é soropositivo, e a compreensão dos dois de sua posição na sociedade, e como transportar isso para suas letras.
Leia também: Festival do Rio aposta em seleção brasileira de filmes com 84 produções em 2018
Marginal
Em determinado momento do filme, Skunk afirma para Marcelo que ele é negro, o que o amigo nega. Skunk então explica que esse conceito está relacionado a marginalidade de Marcelo, fato relacionado a maneira como o negro é visto pela sociedade brasileira em geral. “O Skunk enxergava o Marcelo como preto porque enxergava ele como excluído, marginalizado e a gente ainda tem um forte viés de cor, e de raça e de etnia na marginalização do povo brasileiro”, comenta Ícaro Silva. “Quando ele chama o Marcelo para essa negritude, ele está justamente chamando para assumir a marginalidade dele”, completa.
O pouco de cor que o filme tem vem da música, seja do É o Tchan passando na TV de uma loja ou dos dois na sala vendo clipes dos Beastie Boys. Mas, no geral, o longa assume um tom quase preto e branco, que Johnny explica ser intencional: “a cor representa essa aridez de uma época dificílima, final do plano Collor, do governo desse presidente maravilhoso que a gente teve. A falta de dinheiro, de opção, de possibilidade – e é isso que a gente espera que não aconteça nunca mais”, explica.
“Legalize Já” pelos olhos de D2
Marcelo D2 é amigo de longa data de Johnny Araújo, que dirigiu alguns dos principais clipes da carreira solo do rapper, como Qual É e Lodeando . Foi D2 que, há muitos anos, falou para Johnny que ele vivia um sonho que não era dele. “Johnny, tudo isso que aconteceu comigo veio por outra pessoa. Veio por um cara que eu conheci do nada e mudou minha vida completamente”, disse, se referindo a Skunk.
E é D2 a maior referência para contar a história do amigo. Há poucos registros de Skunk, algumas fotos e nem um vídeo dele falando. Para cria-lo, Ícaro usou suas referências como “um menino que cresceu na periferia de Diadema”, mas também o encontrou na alma de D2. “O Skunk vive nos olhos do Marcelo. Eles está muito presente no que é o Marcelo hoje. Eu tirei ele de lá. Eu peguei da alma do Marcelo, dos olhos do Marcelo, do jeito como ele fala desse amigo”, confessa.
Leia também: "Vivemos um véu de hipocrisia", diz Ícaro Silva, que estrela “Legalize Já”
Marcelo Peixoto, que se tornou D2 depois, foi referência distinta para cada um dos atores. Para Góes, ele serviu como fio condutor e, como o ator conta, para acalmá-lo e tranquiliza-lo. Por fim, ele está também nos relatos de suas companheiras – Sônia, Manuela e a atual mulher Camila Aguiar. “Embora essas mulheres sejam completamente diferentes, todas elas têm relatos muito apaixonados por ele”.
“Eu já chorei lendo o roteiro, já chorei vendo as filmagens e já chorei dando entrevista” comenta D2 em um vídeo de bastidores do filme. Presente durante as gravações, ele acabou sendo o maior narrador da história do amigo. Os dois se conheceram por dois anos, mas sua amizade, assim como o legado de Skunk, agora são eternizados em “ Legalize Já ”.