“Legalize Já” faz belo retrato da amizade de D2 e Skunk antes do Planet Hemp
Dupla que formaria o Planet Hemp em 1993 tem sua história contada em "Legalize Já", novo filme de Johnny Araújo e Gustavo Bonafé
O Planet Hemp marcou a história da música no começo dos anos 1990 quando surgiu no cenário carioca misturando rap e rock e cantando sobre liberdade, abuso policial e legalização das drogas. Para que isso acontecesse, porém, foi necessário o encontro entre a musicalidade de Skunk e as letras de Marcelo D2. E é esse encontro que “Legalize Já” explora.
O filme de Johnny Araújo e Gustavo Bonafé, que foi por muito tempo “Anjos da Lapa” antes de virar “ Legalize Já ”, deixa de lado as polêmicas, as prisões por apologia às drogas e o futuro de D2 além do Planet Hemp para mostrar como essa amizade improvável surgiu em meio às ruas largadas da Lapa, no Rio de Janeiro.
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O bairro carioca, diferente do movimentado circuito boêmio que tem hoje, era abandonado no começo dos anos 1990, ponto apenas para os camelôs que vivam à sombra do “rapa”. Era lá que Marcelo – ainda Peixoto (Renato Góes) vendia suas camisetas de banda de rock e metal undergound, sem sucumbir aos apelos dos clientes por estampas com nome de bandas de pagode (“Não tem nada nacional aí? - Tem, pô! Ratos de Porão”).
Enquanto isso, Skunk ( Ícaro Silva ) apelido de Luís Antônio, vivia pelas mesmas ruas vendendo suas mixtapes com as novidades da música americana, que incluíam N.W.A, Public Enemy e Run D.M.C. Mas além do rap, o hardcore, o reggae e o punk também estavam entre as suas influências e foi o estilo, personalizado nos Dead Kennedys, que uniu os dois.
Skunk e Marcelo não tinham amigos em comum, mas amavam as mesmas músicas e viviam no mesmo submundo carioca. Foi esse amor, além da sensação na pele do desprezo social que fez com que Skunk convencesse Marcelo a musicar suas letras.
O romance de “Legalize Já”
O longa quase não tem cor e essa decisão de Johhny e Gustavo não foi aleatória. A colorização – ou falta dela – amplia ainda mais a solidão e a sensação de marginalidade. Marcelo tem uma relação ruim com o pai, que o expulsa de casa para que ele aprenda a se virar. Enquanto isso a namorada Sônia (num delicado retrato de Marina Provenzzano) tenta juntar dinheiro para fazer um aborto. Marcelo não se encaixa em lugar nenhum – não há espaço para ele na casa do pai, nem nos conflitos da companheira ou mesmo na rua vendendo suas camisetas.
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Skunk também é solitário, mas por escolha própria. O mundo ao seu redor, mesmo que duro, emana afeto. Seu quarto é repleto de tudo que ele mais gosta, com referências musicais e aparelhos de som, enquanto a pessoa mais próxima de sua família, o dono de bar Brennand (Ernesto Alterio) o acolhe, dá comida e algum carinho. E é esse carinho que, de alguma forma, ele repassa para o novo amigo.
Embora sugira uma possível paixão de Skunk por Marcelo, o roteiro não segue pelo caminho mais fácil e preguiçoso da sexualidade de Skunk, deixando implícito o que pode ser, como as cenas em que Marcelo aparece fazendo sexo com a namorada entrecortadas com a solidão do amigo. Skunk chega a chamar Sônia de “Yoko Ono” quando Marcelo repensa sua dedicação à banda em prol de um emprego estável, para criar o filho.
Skunk é soropositivo e como ele contraiu o vírus também não é dito. Não importa: ele não quer mais se medicar e decide que, enquanto pode, vai viver como quer. E Ícaro incorpora essa mensagem brilhantemente. Há poucos registros do Skunk original, que faleceu pouco antes do Planet Hemp estourar na cena nacional, e menos ainda do Luís Antônio que passava mal por conta da doença.
Ícaro partiu de um conceito de quem era Skunk e deu vida a um personagem raro no cinema nacional. Marginalizado e soberbo ao mesmo tempo. Oprimido e cobrando de Marcelo que se libertasse das imposições da sociedade. Se Silva ainda não tivesse um imenso futuro pela frente, seria fácil dizer que esse é papel de sua carreira.
Góes não fica atrás e seu retrato de D2 é impressionante. Enquanto a voz ao cantar é praticamente a mesma do original, o ator também teve sua chance de criar um Marcelo novo, inocente, que ainda não entendia muito bem o que queria com os rabiscos que anotava em seu caderno.
Johnny e Gustavo deram à dupla a oportunidade de desenvolver algo novo, e sua ligação é o único fio condutor possível para o filme. Eles são oprimidos e buscam sua liberdade, mas o filme funciona por que eles o fazem juntos.
Conhecido nacionalmente, o Marcelo retratado no filme é bem diferente do que estamos acostumados. Sem perspectiva, a mercê das circunstâncias, ele é salvo por Skunk, devidamente homenageado como precursor do Planet Hemp.
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Mais do que uma biografia ou uma história sobre música “ Legalize Já ” é uma história de amor. Talvez não convencional como os romances tradicionais, mas com a mesma potência transformadora. Juntos, eles criam algo novo, algo que mudaria suas vidas para sempre.