O caso de Júlio Cesar, um homem negro assassinado pela polícia em 1987, que depois de 31 anos tem sua história e os poucos minutos de vidas restantes recontados pela cineasta Caroline Moraes. Mulher negra, criada em uma família de artistas envolvida e militante do movimento negro, a diretora coloca novamente após 34 anos da estreia de “Amor Maldito”, da também diretora negra Adélia Sampaio, um filme dirigido por uma mulher negra no circuito comercial do cinema brasileiro.
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Além de uma forma de arte, o cinema também é uma ferramenta social e política que reflete a sociedade em que vivemos, podendo tornar-se um elemento essencial de resistência e luta contra a atual realidade. Sendo assim, a presença de uma mulher negra por trás de uma câmera é significativamente um sinal de mudança. No Brasil, essa representatividade teve início nos anos 70, quando Adélia Sampaio escreveu e co-dirigiu o documentário "AI 5 – O Dia Que Não Existiu".
Já em 1984 lançou "Amor Maldito", o primeiro filme brasileiro com foco em um relacionamento lésbico, tornando-se assim a primeira mulher negra a dirigir um longa no país. Aos 74 anos e longe da direção a doze, retornou esse ano no Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo com "O Mundo de Dentro".
Esse cenário procura reafirmar a presença de mulheres negras por trás de uma câmera, diferentemente do que aconteceu nos últimos dois anos.
Segundo dados do primeiro levantamento da Agência Nacional do Cinema (Ancine) a contemplar dados sobre raça no audiovisual, nenhuma mulher negra dirigiu ou escreveu nenhum dos 142 longas-metragens brasileiros lançados nas salas do país em 2016. Algo que se repetiu em 2017, quando apenas 16% dos 160 filmes brasileiros lançados nos cinemas foram dirigidos exclusivamente por mulheres, mas nenhum negra. Ainda assim, 61 das 104 distribuidoras que atuam no território não lançou nenhuma obra brasileira com direção exclusivamente feminina.
"O Caso do Homem Errado"
Relutanto contra as negativas e contribuindo para que o contexto mude, a gaúcha Caroline Moraes, formada em jornalismo, mas introduzida no mundo cinematográfico desde criança quando ia com seu pai, o roteirista e escritor Paulo Ricardo de Moraes, ao Festival de Cinema de Gramado, encontrou na disciplina de documentário, ainda durante o período da faculdade de comunicação, uma paixão plantada desde cedo.
Ganhadora de dois Galgos de Ouro no Festival de Gramado com o documentário “Mãe de Gay”, foi para Salvador cursar BI de Artes com concentração no audiovisual, onde produziu o curta-metragem “A Escrita do Seu Corpo”, que circulou por alguns Festivais e Mostras de Cinemas no Brasil e também EUA, até a chegada do seu primeiro longa-metragem, " O Caso do Homem Errado ".
Precisando se impor constantemente dentro do cenário por ser mulher e negra, a cineasta conta que não vê tantas figuras que a represente dentro do mundo que atua, e por isso, em muitos casos, precisa se impor fortemente.
"Tenho aprendido muito na prática, e infelizmente, ainda há um grande desrespeito em desconsiderar a nossa fala, então é preciso me impor e muitas vezes esse meu modo de agir é considerado como sendo uma pessoa grossa. Porém, se agindo desta forma as pessoas já me tratam assim, imagina se não me imponho perante determinados assuntos e ações", fala.
A escolha de contar a história do operário negro Júlio César se dá pelo contexto social em que o Brasil se encontra. De acordo com o Atlas da Violência de 2018, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mostra a forte concentração de homicídios na população negra quando calculadas dentro de grupos populacionais de negros (pretos e pardos), revelando entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios contra a população negra cresceu 23,1%.
"Há um morticínio no país e a gente não pode achar isso natural. Não podemos transformar apenas esses jovens negros em estatísticas, números, pois quando mata um jovem negro, mata uma família inteira, uma comunidade, a sociedade que perde com essas execuções", desabafa.
"Então, contar a história de Júlio César é dizer que estamos gritando, pedindo um basta na execução da maior parte da população brasileira. O caso do Júlio César aconteceu em 1987 e mais de 31 anos continua acontecendo", diz, que só em 2016 conseguiu uma parceria com uma produtora de cinema de Porto Alegre, Praça de Filmes, que ofereceu todo o suporte técnico para as gravações.
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A dificuldade de uma mulher negra em produzir um filme no Brasil
Sem ser aprovado em editais, a produção do longa começou em 2016 com o intuito de lançá-lo em maio do ano seguinte, quando o caso completaria 30 anos, além de dar um retorno para a comunidade negra que apoiou financeiramente a conclusão do projeto.
"Pessoas da comunidade negra doaram dinheiro na época das gravações, no qual foi possível bancar as diárias com o mínimo de recursos que tínhamos em mãos. E até hoje em dia o filme só tem feito essa trajetória porque ele é feito por um coletivo que atua em diversas frentes e sabe da importância deste material chegar nas mais diversas frentes", fala.
A falta de incentivo às produções audiovisuais no país, principalmente a projeto de mulheres, pode mudar a partir do Projeto de Lei 10516/2018, de autoria de Jandira Feghali (PCdoB/RJ) e Paulo Teixeira (PT/SP), apresentado em julho desse ano, que propõe cotas de 50% para negros, indígenas e mulheres nos processos seletivos de criações multimídias financiadas com recursos do governo. A PL ainda segue em tramitação na Câmara dos Deputados.
Quem também faz ressalvas sobre o tema é Renato Candido, Vice-Presidente da APAN (Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro), sobre a falta de negros no mercado audiovisual. "É importante ressaltar que a existência da Lei do Audiovisual e outros mecanismos como o FSA, Editais da SAv/MinC e Editais Regionais não garantem a presença de realizadoras negras e negros e tampouco suas empresas produtoras audiovisuais", expõe.
O contexto apresentado segue comprovado pela pesquisa da Agência Nacional do Cinema (Ancine), com a análise de raça e gênero dos profissionais por trás de obras incentivadas com recursos federais, que representam 61,3% da produção nacional em 2016. Entre todas estas obras, apenas 21% tinham mulheres na direção e 28%, no roteiro. Além disso, pessoas brancas dirigiram 100% das obras incentivadas e roteirizaram 98%.
Em complemento, ressalta que as pessoas negras também não estão presentes nas diversas etapas de posição de decisão e investimento numa produção audiovisual.
"Como polítiica pública, onde estão as pessoas negras no Conselho Superior do Cinema, no Conselho Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual - FSA, nas Comissões de Seleção de Projetos nas linhas do FSA? Como mercado, as pessoas negras estão tendo reais oportunidades de competir por distribuição e produção de filmes?", completa.
Cineastas negros no circuito comercial
Quebrando barreiras, o filme de Caroline Moraes, que estreou nos cinemas de Porto Alegre apenas oito dias depois do assassinato da vereadora Marielle Franco (1979-2018) no Rio de Janeiro, foi selecionado em 2017 para o Festival de Cinema de Gramado, ganhou o prêmio de melhor longa-metragem no 9º Festival Internacional de Cine Latino – Latinuy e também foi exibido Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, Festival de Cine Político em Buenos Aires, na Argentina e no Cinesesc.
Contribuindo para que artistas negros estejam presentes no mercado audiovisual brasileiro, o cineasta e ator Zózimo Bulbul, que morreu em 2013, é idealizador do Centro Afrocarioca de Cinema, espaço de formação, produção e difusão do audiovisual negro, e também do Encontro de Cinema Negro Brasil, África e Caribe, importante janela que exibe diversas produções realizadas por cineastas negros.
Em 2017, quando o evento completou 10 anos, o Encontro de Cinema Negro Brasil, África e Caribe apresentou um marco significativo, quando dos sessenta e oito filmes selecionados para o festival, a maioria sendo dirigido e roteirizado por mulheres negras brasileiras.
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Cinema negro nos Estados Unidos
O case de sucesso americano se dá pelos trabalhos de Ava DuVernay, diretora e roteirista americana que dirigiu a produção da Disney "Uma Dobra no Tempo" (2018), que se tornou o filme de maior bilheteria nos Estados Unidos em todos os tempos dirigido por uma mulher negra.
DuVernay também ganhou o Prêmio de Melhor Direção por seu longa-metragem, "Middle of Nowhere", no Festival Sundance de Cinema, em 2012, tornando-se a primeira mulher afro-americana para ganhar o prêmio. Já com "Selma" (2014), também foi a primeira diretora negra a ser nomeada para um Globo de Ouro e Oscar na categoria de Melhor Filme.
O próximo trabalho da diretora será dirigindo a adaptação para o cinema de "Novos Deuses", criada para a DC Comics por Jack Kirby, co-criador de "Capitão America" e "X-Men".
Esse ano, outra marca significativa no Oscar se deu pela indicação da cineasta Dee Rees, como primeira mulher negra a disputar o Oscar de roteiro adaptado por "Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississippi", em parceria com Virgil Williams e do qual também é diretora.
O futuro é negro!
Quando questionada sobre a representatividade para outras cineastas negras no cinema, Caroline Morais reconhece que é preciso ter espelhos para saber que é possível chegar em determinados espaços com a consciência e convicção que temos.
"É preciso ter mais pessoas semelhantes a mim, com pele escura, com rastafari, nesses ambientes, para não nos sentirmos sós, para saber que o que estamos falando não é algo absurdo e sim real", completando com a força de vontade que as mulheres negras estão para conquistar ainda mais o seu espaço: " A união tem muita força e as mulheres no audiovisual percebem isto e cada vez mais tem se posicionado, criado espaços de fala, de mostrar para o que viemos e os locais que queremos estar. Isto não tem volta", conclui.
Com pelo menos cinco longas de cineastas negras sendo produzida no país, entre eles estão "Um Dia de Jerusa", ficção da baiana Viviane Ferreira, com lançamento previsto para 2019 e o documentário da paulista Juliana Vicente sobre Ruth de Souza.
Outras cineastas negras que também merecerem ter seus trabalhos contemplados são Larissa Fulana de Tal, que em seu nome artístico já homenageia as pessoas comuns cujas histórias cotidianas se perdem no anonimato, com o longa "Lápis de Cor" e a cineasta Sabrina Fidalgo, que com o seu novo curta-metragem "Rainha" recebeu o prêmio de melhor filme pelo júri popular do Curta Cinema , um dos mais tradicionais festivais de curtas do Brasil.