“O racismo , tal qual a gente conhece é uma criação da cultura ocidental, que é na realidade a cultura hegemônica em termos de domínio econômico e politico”. Definindo, assim, como é que uma construção racista de visão de mundo começou a se espalhar, é que a historiadora, mulher, negra e especialista em racismo Juliana Serzedello, também professora do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), amaciou as almofadas do assento para uma conversa sobre como o debate em torno da questão racial tem refletido no universo do entretenimento.
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Falando em contextos cinematográficos, a última premiação do Oscar registrou um aumento significativo do destaque para profissionais negros do cinema. No entanto, isso não ocorreu apenas da vontade de ampliar mais o olhar, mas também por mérito das próprias pessoas negras, que conquistaram, por meio de passos curtos e lentos em uma luta constante contra o racismo , a oportunidade de estar nesses espaços (que sempre foi de todas elas por direito). E é evidente que isso tem consequências não só para a própria trajetória desses profissionais, mas também para a visão do público que acompanha as produções e as escolhas da academia na hora de premiar, seja essa visão profunda ou não.
A raiz do problema e os resultados da desconstrução dele
Toda essa resistência com a qual a negritude de artistas se encontra, que se coloca na prática como barreiras e obstáculos, nada mais é do que um reflexo do racismo , que segundo a historiadora Juliana Serzedello, tem raiz na cultura do continente Europeu e tracejou todo um caminho para os negros em contextos mundiais. “A cultura europeia se projetou por outras regiões e continentes e conseguiu estabelecer os parâmetros que a gente chama hoje de “parâmetros raciais”. Então tudo o que a gente chama de racismo é resultado da hegemonia europeia sobre outras regiões”, explica.
Isso posto, dá para compreender que o pensamento racista, por ser hegemônico, toma conta de muito mais cabeças do que se pode imaginar (a maioria delas) e que está aí o começo de toda essa coisa que dificulta tanto o protagonismo de pessoas negras não só no cinema e em qualquer tipo de universo que crie produtos audiovisuais, mas na vida.
Voltando para o mundo da luz, câmera e ação, ainda que o racismo esteja (bem) longe de ser desconstruído por completo, é preciso olhar para os resultados que a luta negra vem conquistando, como o aumento da criação de produções que colocam o preconceito contra pessoas de cor em discussão e o reflexo dela nas discussões do público (ainda que essas durem menos do que deveriam, é importante que o debate esteja, ao menos, acontecendo).
Além disso, há também o maior número de pessoas negras indicadas à categorias do Oscar na última edição do prêmio e, ainda, o fato de que a estatueta de melhor filme foi para “ Moonlight: Sob a Luz do Luar ”, de Berry Jenkins, que contou com negros não só na direção do filme, mas também no papel principal e na parte de roteiro para estruturar a história de vida de um homem negro e homossexual.
Esses fatos fizeram com que o contexto do entretenimento cinematográfico mudasse bastante e no pequeno intervalo de apenas um ano. É importante lembrar que, em 2016, a hashtag #OscarSoWhite tomou conta das redes sociais justamente pela ausência de diversidade nas indicações que tinham somente pessoas brancas nomeadas, em sua maioria, homens. E a última vez, antes de 2016, em que negros concorreram em categorias principais, como de ator e atriz principal e de coadjuvante, ficou lá em 2013, com Chiewetel Ejiofor e Lupita Nyong’o, pelos papéis em “12 Anos de Escravidão”, e Barkhad Abdi, por “Capitão Phillips”.
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Em 2017, indo curiosamente na contramão do que aconteceu no ano anterior a ele, o cenário das indicações mudou significativamente a partir do momento em que todas as seis principais categorias da premiação continham, pelo menos, o nome de um diretor, atriz ou ator negros. Além disso, a premiação desse ano também bateu um recorde: o de número de indicações de atores negros, que ficou em 6 nomes e, até então, o Oscar com mais negros indicados havia sido o de 2006.
Produções que estão quebrando estereótipos e mudando o protagonismo negro
Os efeitos de produções que levantam o debate sobre racismo não estão apenas dentro dos limites de fazer com que uma questão de extrema urgência de atenção como essa esteja em pauta, é também influenciar o aparecimento de outras obras que não deixem essa discussão morrer, como sempre acontece. Além de “ Moonlight: Sob a Luz do Luar ”, é importante destacar outras criações do entretenimento que pautam a questão racial de algum jeito: ora dando o papel principal para atores e atrizes negros, ora falando do racismo propriamente, ora desenvolvendo papéis livres dos mesmos clichês e estereótipos de sempre.
O longa “ Estrelas Além do Tempo ” (2017), de Theodore Melfi, por exemplo, fala, em contexto de Guerra Fria, de uma disputa por uma supremacia na corrida espacial enquanto a sociedade americana, paralelamente, vive uma realidade de cisão racial entre pessoas negras e brancas. Essa situação reflete também na NASA , onde um grupo de funcionárias negras é obrigado a trabalhar separado do restante.
O drama biográfico de Melfi além de levantar a questão do racismo , ainda colabora para a quebra de estereótipos quando coloca um holofote em cima da história real de três mulheres negras, interpretadas por Taraji P. Henson, Octavia Spencer e Janelle Monáe, que provam sua competência, inteligência e capacidade, colocando esses três fatores acima de qualquer questão que queira usar a cor de pele como desculpa para reproduzir e reafirmar preconceitos.
Na mesma linha de “Estrelas Além do Tempo”, há também a série “ Dear White People ” ou “ Cara Gente Branca ”, da Netflix . A série, lançada em abril de 2017, retrata o quanto jovens universitários, que constituem um grupo de classe média norte-americana, ainda com todo o intelecto e acesso à todos os meios possíveis e imagináveis de informação e educação que uma universidade pode oferecer, ainda podem reproduzir e contribuir para a perpetuação de um discurso deslegitimador e racista por meio de micro e macro opressões diariamente vividas por pessoas negras e as diferentes formas que essas pessoas escolhem de combater o racismo que as atinge.
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Além dessas produções, há também o filme “ Corra! ” (2017) que pauta a questão racial, mas mais especificamente inter-racial . No enredo, um pouco diferente de muita coisa que já foi produzida por misturar racismo com terror.
Chris, um homem negro, se relaciona com uma mulher branca e está prestes a conhecer a família dela, muito amorosa num primeiro momento, mas que esconde algo perturbador por trás do tratamento excessivamente atencioso.
O filme tem o mérito de sutilmente abordar a fetichização do corpo negro pelos brancos e, não à toa, coloca uma monte de brancos velhos e europeizados como vilões. É um filme que sintetiza muitíssimo bem esse momento em que a indústria de entretenimento promove esse importante debate de maneira absolutamente irrestrita.