“Não é só por 20 centavos”. Essa frase emblemática serviu como mote para as manifestações que despontaram no Brasil em 2013. O estopim pode até ter sido o aumento de R$ 0,20 no valor do transporte público paulistano, porém o movimento parecia ser reflexo de uma insatisfação coletiva.

Uma das maiores expressões culturais brasileiras, o carnaval serviu como palco em 2018 para uma grande manifestação política contra o atual governo
Reprodução/TV Globo
Uma das maiores expressões culturais brasileiras, o carnaval serviu como palco em 2018 para uma grande manifestação política contra o atual governo

O brasileiro parecia cansado de ouvir sempre as mesmas promessas, e pouca solução concreta. Como resultado, muitos foram às ruas fazer manifestações , reivindicando tudo. Tudo mesmo. Os manifestantes falavam no fim da corrupção, melhorias na saúde, educação, e outros problemas sociais enfrentados por nós.

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Assim como as manifestações de 2013, outros eventos surgidos nas últimas décadas visavam questionar e alterar o “status quo”. Black Lives Matter, Ocuppy Wall Street e Primavera Árabe são alguns deles. Todos esses movimentos parecem ter em comum essa mesma sensação de insatisfação coletiva. Embora em datas diferentes, países diferentes e com propósitos diferentes, essas manifestações guardam, em seu cerne, o mesmo núcleo. E ele pode muito bem ter surgido em Maio de 1968, na França.  

Um dia em 68

Maio de 1968 ficou marcado por uma série de protestos na França que culminaram na maior greve geral que o país já viu. Tudo começou com os estudantes da Universidade de Nanterre, mas se alastrou para a classe trabalhadora que, apesar de não concordar com os ideais burgueses dos estudantes, viu nessa movimentação uma oportunidade de exigir seus direitos.

O período de intensas manifestações, resultado dessa tal insatisfação coletiva, marcou o começo de uma nova era cultural que viria a afetar o mundo todo. “Maio de 68 é sempre citado como um marco contemporâneo de um conjunto de lutas no âmbito da cultura. Porque são questões que envolvem mudança de comportamento, de visão do mundo”, explica Armando Almeida, doutor em Cultura e Sociedade. Para ele, o movimento abriu caminho para muitos outros que viriam a seguir, apesar de não considerá-lo o mais simbólico.

Ele cita Woodstock , que aconteceria em Nova York no ano seguinte, como um acontecimento muito mais emblemático que afetaria a cultura nos anos a seguir.  

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“Flower Power”

O Festival de Woodstock, em 1969, também foi um marco emblemático da contracultura
Reprodução/PunkNews
O Festival de Woodstock, em 1969, também foi um marco emblemático da contracultura

Em agosto de 1969 o fazendeiro Max Yasgur cedeu suas terras na pequena cidade de Bethel, em Nova York, para a realização de um festival de música, onde se apresentariam artistas como Jimmy Hendrix, Joe Cocker, The Who e Janis Joplin. Nem Max, nem esses artistas, nem ninguém imaginaria o que aconteceria a seguir: 400 mil pessoas acampadas durante quatro dias para prestigiar esses artistas e se firmar como marcos da contracultura.

Em 1968 os EUA estavam sendo massacrados no Vietnã. Martin Luther King foi assassinado em abril. J. F. Kennedy tinha morrido cinco anos antes e seu irmão Robert Kennedy foi morto a tiros em junho de 1968. Em meio a tudo isso, a população despontava por todo o país pedindo paz e amor.

Desse período ganham força os movimentos feminista, negro e homossexual, para citar alguns. “(Woodstock) tem peso muito grande no mundo contemporâneo porque assistimos o acirramento das questões de identidade, que por sua natureza são simples, mas guardam em si ambiguidades bastante complicadas”, explica Armando.

Você viu?

Não é que antes de 1968 as pessoas não questionassem suas identidades ou manifestassem sua indignação. Mas foi como se essas pequenas insatisfações fossem se acumulando e, depois de maio de 68 na França, se tornou inevitável que as pessoas fossem às ruas exigindo mudanças. A insatisfação deixou de ser local, e passou a ser global.

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Avançando a passos lentos, 50 anos depois

QueerMuseu gerou grande debate a respeito de
Reprodução/Facebook
QueerMuseu gerou grande debate a respeito de "doutrinação", arte, e liberdade de expressão com uma exposição que propunha questionar a sociedade

“Hoje aquela frase da música do Belchior ‘vivemos igual nossos pais’ não é verdade. Eu não criei meus filhos como meus pais me criaram”, comenta Armando. Mas ainda assim, 50 anos depois, vemos batalhas serem travadas a passos de formiga.

Em 68, os trabalhadores se uniram aos protestos na França pedindo melhores condições de trabalho. Em 2017, boa parte do Brasil parou em uma greve geral em protesto contra as reformas nas leis trabalhistas.

Em 1969 as mulheres fizeram parte do movimento que pregava liberdade sexual. Em 2018, continuamos questionando seu papel na sociedade com base em sua atividade sexual.

Nos anos 1960 o termo “Black is Beautiful” (o negro é lindo) se tornou o lema do movimento negro. Em 2018, vemos os negros ainda serem relegados a papeis menores, de empregados e motoristas no nosso maior produto de dramaturgia, as novelas.

O movimento falhou?

Armando acredita que não. Sem Maio de 68, ou Woodstock em 1969, não teríamos os fenômenos de hoje. Ele cita o movimento feminista como exemplo. Mesmo que as manifestações em defesa dos direitos das mulheres já ocorressem antes dos anos 1960, nesse período elas se intensificaram, e só nos dias de hoje se organizaram. “O movimento feminista nunca foi tão forte como hoje”, comenta.

O sociólogo Elísio Estanque reitera a importância de 1968. Em um artigo para a Revista Cult, o autor afirma que o movimento de 68 se vê presente à medida que emergem novas “perversões no sistema social que reforçam as injustiças e acentuam as desigualdades”.

Atuante no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Estanque afirma que, conforme as democracias revelam suas fragilidades (como vemos no Brasil atualmente), é importante assumir a lição do Maio de 1968 e as potencialidades dos movimentos rebeldes que “buscam novos caminhos para um mundo mais justo, fraterno e equilibrado”.

Contracultura e conservadorismo

Ao mesmo tempo em que vemos avanços, também cresce a onda de conservadorismo. “Há uma reação conservadora no mundo todo, mas parece coisa relacionada à classe social”, explica Armando. E Maio de 68 foi além disso, reforçando o conceito de contracultura, ou seja, uma contestação geral dos padrões estabelecidos para a sociedade, como um todo, e não apenas determinada classe social.

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Porém, os próximos anos (ou meses) serão decisivos para a herança no Maio de 1968. Esse momento reacionário gera uma onda de pessimismo que desanima os simpatizantes do movimento, que lutam por uma sociedade mais justa. Por outro lado, aumenta a insatisfação que leva a manifestações . Como lembrou Armando sobre uma frase comum em 68, “sejamos otimistas, deixemos o pessimismo para dias melhores”.

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