“O mundo está muito chato”. É assim que com os cigarros entre os dedos o filósofo Luiz Felipe Pondé começa a organizar suas impressões sobre o cenário social e político brasileiro atual. De pernas cruzadas, um ar de leveza escancarado no rosto e intercalando um trago com algum comentário sobre seus projetos, Pondé se preparava para o lançamento do seu mais recente livro “Contra Um Mundo Melhor – Ensaios do afeto” (Editora Contexto, 160 pgs, R$ 37,00), em São Paulo, quando recebeu o iG Gente para uma conversa. “Mas pode fumar aqui?”, questionava um amigo do filósofo. “Se pode eu não sei, mas a gente fuma mesmo assim”, respondia Pondé aos risos.

O filósofo é autor de 16 publicações livros e ainda leciona em duas universidades de São Paulo
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O filósofo é autor de 16 publicações livros e ainda leciona em duas universidades de São Paulo

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Como já anunciava seu livro, “Guia Politicamente Incorreto da Filosofia”, Luiz Felipe Pondé não é um homem que mede suas palavras para falar sobre qualquer assunto. Nem mesmo um gravador ligado é capaz de inibir a maneira como as palavras são construídas e saem de sua boca: “não vou falar nenhuma besteira, então não me importo”, anunciou o filósofo no início da entrevista quando questionado sobre a gravação do áudio.

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Diferentemente do que os Beatles anunciavam em 1968 com a canção Revolution, inspirada nas turbulências políticas e culturais da época, nem todos querem mudar o mundo – e Pondé é um deles. “A ideia de que a gente tem que pensar o tempo inteiro para um mundo melhor acho que enfraquece o pensamento. Enfraquece o pensamento público. Porque você começa a falar só o que todo mundo acha legal, fica preocupado o tempo inteiro em passar uma imagem de você como uma pessoa legal, os intelectuais viraram quase uma espécie de clero”, opina o filósofo, revelando que o título do seu novo livro tem como intuito o impacto.

“Contra Um Mundo Melhor – Ensaios do afeto” reúne diversos ensaios que foram motivados por algo muito mais íntimo do que se imagina. “O que me motivou a escrever foi uma irritação com isso”, comenta. “Mas quando você entra no livro, ele fala bem contra quem estou escrevendo: ‘se você é alguém que quer salvar o mundo com seu prato de comida, sua alimentação, sua saúde, se você se acha uma pessoa do bem, esse livro foi escrito contra você’. Eu escrevo mais ou menos assim, para te irritar”, completa.

Apesar do início da obra literária aparentemente ser agressivo para alguns, Pondé garante que seus ensaios não são sobre isso, mas sim sobre um leque de temas que perpassam os mais diferentes espaços da sociedade: das universidades às igrejas e até mesmo à vida privada, mais especificamente as relações entre quatro paredes. “Eu defino que o livro é escrito a partir do ponto de vista cético e trágico. O título vem parecendo que vai ser um livro militante contra um mundo melhor e no final é um livro olhando a condição trágica do ser humano”, explica.

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O autor de "Contra Um Mundo Melhor"

O ceticismo, por sua vez, vem acompanhado da paixão. “No livro eu entendo afeto na chave da história da filosofia mesmo. Afeto é uma derivação latina da palavra afexo que é uma derivação do grego pathos, que é paixão e doença. Eu entendo assim, esse é o sentido que eu uso de afeto no livro. É o sentido filosófico e assim o afeto me move e eu acho que ele é uma das grandes baixas”, explica. “E eu acho que uma das grandes baixas de quem quer fazer um mundo melhor é justamente a vida afetiva, porque ela é desorganizada, desorganizadora, meio incontrolável. A civilização é toda construída para colocar ela no lugar e no livro eu vou pegando exemplos de como esse afeto se manifesta”, completa o filósofo.

Com experiências na linguagem audiovisual e escrita – expressa inclusive em uma coluna nutrida por Luiz Felipe Pondé na Folha de S.Paulo – o filósofo explica que a construção da sua narrativa é orgânica e fluída. “É um livro que tem uma certa construção literária na linguagem. Ele não é evidente. Se você vai procurar alguma coisa para dizer que ‘o Pondé é louco’ ou contra, sei lá, coelhinhos roxos, você não vai encontrar”, comenta. “O processo criativo é o processo criativo que acontece comigo. Eu sento e escrevo. Eu não planejo antes, eu não monto antes. Quando eu escrevo um ensaio eu não sei qual é o próximo. Um tema vai puxando o outro e vem de várias fontes, no sentido de várias fontes de inspiração. O mundo é um estimulo constante se você resolve olhar para ele de uma forma menos óbvia”, completa.

Um debate público precário

“Contra Um Mundo Melhor – Ensaios do Afeto” vai além de mais uma produção intelectual: também é uma tentativa de incrementar o debate público que, para ele, está cada vez mais precário. “Quanto mais a gente tenta dizer que os afetos estão no seu lugar certo, mas eles aparecem na sua versão terrível. Basta ver a violência das mídias sociais, a polarização, os ódios crescendo. Como eu acho que o debate público deveria ser é uma questão bem complicada porque quando você está no debate público você tem que tomar cuidado porque você vai influenciado pessoas”, comenta o filósofo, que também revela que normalmente não está interessado no que as pessoas pensam sobre o que escreve – não por uma atitude treinada, mas sim por falta de tempo, como ele mesmo define.

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O livro foi publicado primeiramente em 2010 e agora ganhou uma segunda edição este ano

“Se nós que estamos inseridos no debate público nos preocupássemos menos em pensar para um mundo melhor, talvez nós conseguíssemos pensar melhor em como o mundo está. Sem querer ser o tempo inteiro construtivo, o tempo inteiro edificante, como se fala em filosofia, querendo falar só aquilo que as pessoas querem escutar e que se sentem bem escutando”, explica. Presente nas redes sociais – mas ao mesmo tempo distante delas, já que suas contas são comandadas por uma equipe de mulheres profissionais da área – Pondé compreende que, atualmente, essas novas mídias possam ser grandes influenciadoras no mundo real.

Relembrando as polêmicas envolvendo a arte no final de 2017, com a exposição “QueerMuseu” em Porto Alegre ou a “La Bête” no MAM em São Paulo, Pondé afirma: “A nudez continua criando frisson. Acho que o que cria frisson é o sexo e está aí uma das mentiras da nossa época, achando que o que o Freud falou não é verdade, achando que o que Nelson Rodrigues falava não era verdade, quando na verdade eu acho que o sexo continua fazendo sintoma”.

Contrário à presença de crianças em exposições e performances como as apresentadas nos museus durante essa época, o filósofo, entretanto, rebate a polêmica criada em torno do debate. “Quando alguém pergunta sobre a questão da arte e da nudez, eu acho um porre. Talvez impacte pessoas que estão fora desse universo de reflexão. E aparentemente impacta e acho que elas têm razão delas ficarem impactadas com isso”, comenta.

Na época, o também professor da PUC recebeu uma mensagem de uma aluna orientanda sobre a exposição na capital gaúcha clamando para que ele intervisse no cenário. “Então eu mandei uma frase no twitter que era algo do tipo ‘se você não gostou da exposição do ‘Queermuseu’ fique em casa vendo netflix e leve seu filho para assistir ‘Batman vs. Super-homem’ e muita gente me xingou. Eu fui num evento depois que muita gente não foi como protesto, porque eu era niilista, perverso”, comenta. “Não acho que a exposição deveria ser fechada, mas acho que o problema está nos coordenadores escolares que acham que você deve levar crianças para ver foto desenho de gente transando. Acho que provavelmente são eles que querem ver a gente transando”, opina.

Para o filósofo, a obsessão por sexo do mundo adulto pode ser refletida como uma tortura sobre a temática para as crianças. “Eu acho consistente você conversar com as crianças e ensinar que deve respeitar as pessoas e acho que isso já tá em pauta, não precisa ficar torturando elas com imagens e discursos, então eu entendo a irritação das pessoas no momento”, completa.

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Obra do "QueerMuseu"

Entretanto, o caso para ele ofertou um quê a mais sobre o cenário social e político do Brasil. “As mídias sociais trouxeram a tona uma maioria silenciosa que tem uma percepção de mundo bem classe média, fica horrorizada com essas coisas, começa a gritar e aí entra em um embate cultural. Na época se falava muito de guerra cultural, guerrilha cultural, que é um caminho que a direita e esquerda americana fizeram”, explica, trazendo à tona a vitória do presidente Donald Trump nos Estados Unidos como resultado da vitória da direita neste embate. Segundo o filósofo, a ferramenta atual da esquerda brasileira é no plano cultural, baseada numa ideia de “sociedade a partir do controle das mentes e não a partir de revoluções econômicas e políticas”, como explica trazendo à tona teoria de revolução cultural de Gramsci. “Acredito que os jovens ativos nas redes sociais querem replicar esse modelo americano de enfrentar a esquerda no plano cultural que é onde a esquerda ficou”, completa Pondé.

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A polarização sofrida no Brasil nos últimos anos, para o filósofo, chegou também na cultura. “O embate cultural hoje é muito ideologizado, muito polarizado nesse sentido. E como não sobrou nada para a esquerda, ela se apega à cultura, que é um ambiente que normalmente tem pouco dinheiro. Assim, as pessoas equilibram isso se achando construtoras do bem, falando de combater a falta de dinheiro com a autoimagem de que na verdade se você não tem dinheiro você é uma pessoa especial, que tá na frente, querendo transformar o mundo”, comenta.

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Autor critica cenário econômico e social atual

Segundo Pondé, o debate cultural tem aflorado nos últimos tempos porque ali há espaço para colocar lado a lado visões de mundo e valores em tempos de um capitalismo consolidado, como ele acredita. “A guerra cultural como se fala é uma guerra que tem sentindo enquanto aposta política”, comenta. “A cultura está em toda a parte. Grande parte do marketing fazendo um víeis que é um ‘marketing do bem’, que vai salvar o mundo vendendo Coca-Cola. O capitalismo evoluiu de tal forma que ele de fato ele se apropriou da crítica social e transformou isso em marca e elas vão entrando em nichos porque perceberam que num certo nível de classe social média alta pra cima, principalmente os jovens, levam em conta isso para comprar produtos. Mas eles levam em conta isso para comprar produtos porque eles não estão precisando pagar conta de escola de filho”, opina. 

De olho nas urnas

Em ano eleitoral, com uma política repleta de acontecimentos e controversas, o debate político promete ser intenso. Entretanto, para Luiz Felipe Pondé, a cultura não será uma grande questão que pautará esse cenário. “A cultura é uma coisa que para fazer efeito dura tempo. E a maior parte dos debates culturais de forma imediata não chega em grande parte da população”, opina. Para ele, a eleição ainda está parada aguardando a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o destino do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e, enquanto isso, grande parte da população se agarra a figuras de extrema direita como Jair Bolsonaro. “Ele cresce justamente com o ressentimento popular de achar que na verdade a inteligência brasileira não está nem aí para eles. Eu não acredito que o debate cultural vá dominar a agenda das eleições porque de forma imediata as pessoas não estão nem aí para a cultura. As pessoas normais, vamos dizer assim. Acho que vai dominar o debate são temas que vão da economia à corrupção, passando pelo tema da segurança pública”, opina.

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Luiz Felipe Pondé opina sobre ano eleitoral

Para ele, o melhor cenário é a vitória de um político de centro-direita – até porque é assim que ele se define politicamente. O espaço da arte, por sua vez, para o filósofo, ficará restrito a um único lugar: “vai ter alguns cantores fazendo shows com candidatos da esquerda como sempre, mas esse impacto tende ser maior a jovens de classe média”, afirma. “Arte e cultura é coisa de rico, não quero dizer que só rico faz, mas normalmente quem se preocupa com isso é gente que tem alguma condição material, a grande massa. Aqui em cima são temas mais culturais, metafísicos e aqui em baixo é se você come ou mora na rua”, completa.

Se por um lado, há alguns metros dali centenas de pessoas ecoavam gritos de protesto e fé de justiça em razão do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e seu motorista Anderson Pedro Gomes, do outro, naquela sala lotada de um auditório no Itaim Bibi, questionava-se se era possível ainda ter esperanças no mundo – ou se os esperançosos eram apenas iludidos perdidos. Contradizendo Fernando Birri, diretor argentino que afirmou à Eduardo Galeano que a utopia serve para que não deixemos de caminhar, Luiz Felipe Pondé fez-se bem assertivo em sua resposta: “A formação de um cético – a posição que se afasta da esquerda é o cético – é manter o método cético em ação”. Como diria a personagem Amélie Poulain, do clássico filme francês, “são tempos difíceis para os sonhadores”.

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