Não é fácil desenvolver um filme ao longo de cinco anos. Ainda mais um em que necessariamente o final será aberto. Por se tratar de um documentário e brasileiro, a jornada de Carlos Juliano Barros e Caio Cavechini , diretores de “Cartas para um Ladrão de Livros”, torna-se ainda mais especial, atribulada e digna de nota. O filme, que conta a história de Laéssio Rodrigues de Oliveira , considerado pelas autoridades brasileiras o principal ladrão de obras raras do País, estreia nesta quinta-feira (1) nos cinemas do Brasil.
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O documentário tem como ponto de partida as correspondências trocadas entre um dos diretores do filme e o próprio Laéssio , nos períodos em que ele estava preso. Ao todo, Laéssio já passou mais de dez anos detido em penitenciárias de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde se encontra atualmente recolhido. Ambos os diretores de “Cartas para um Ladrão de Livros” são também jornalistas e já assinaram juntos outros três filmes. “Do jornalismo vem a necessidade de mergulhar a fundo em um assunto, de revelar uma pauta de interesse público e, assim, gerar debate e incidir no mundo. Do cinema vem a preocupação estética de fazer o público se conectar com a história a partir da linguagem e da humanidade das situações retratadas”, observa Carlos Juliano. “É um equilíbrio difícil de ser alcançado, mas é necessário tentar”.
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Glamourização e contrapontos
A produção do filme foi interrompida algumas vezes pelo fato de Laéssio voltar à prisão. A angústia de um processo tão intenso e ao mesmo tempo tão intermitente fez com que essa faceta dos bastidores das filmagens do documentário também virasse objeto do longa. “A princípio, cogitamos até fazer ficcionalização de algumas passagens da vida do Laéssio. Porém, como ele é inegavelmente um personagem carismático e extrovertido, acabamos apostando na ideia do acompanhamento e do cinema direto para deixar que o próprio Laéssio se representasse em frente às câmeras”, pontua Carlos Juliano.
Caio vai além. “É importante registrar também que essas voltas à prisão acabaram deixando claro para nós que os bastidores da execução do filme, nossos dilemas e dificuldades, teriam que estar presentes no corte final. Dessa forma, o roteiro acabou incorporando o próprio processo de feitura do documentário . Foi também uma forma que consideramos mais transparente de lidar com a dualidade do Laéssio”. Por dualidade ele quer dizer a preocupação legítima com a maneira como o público irá receber o protagonista, que surge muito consciente de seus atos e objetivos. “Sempre tivemos ciência de que o filme poderia ser visto sob esse prisma de uma suposta ‘glamourização’ do protagonista. Mas, com todo respeito, essa é uma leitura frágil e que não dá conta da complexidade da história e do personagem”, observa Carlos Juliano. Para ele, os outros personagens do longa dão contrapeso à sedutora elaboração do protagonista e jogam para o espectador a responsabilidade de formar um ponto de vista a respeito de tudo o que viu na tela.
Estrutura
O esqueleto do filme, na visão dos cineastas, não necessariamente influencia na digestão pelo espectador, mas dimensiona o personagem no tempo e espaço. “As cenas que abrem o filme são de um protagonista algemado e, na sequência, de um flagrante de câmeras de segurança. É um risco, logo de início, que o público rejeite alguém preso e flagrado cometendo um crime”, reconhece Caio. “Depois é preciso voltar um pouco no tempo e contar, de um lado, como a história desse personagem começou, e, de outro, como a história desse documentário começou. São dois movimentos paralelos, quase inevitáveis para o tipo de documentário que decidimos fazer”.
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O cineastas rejeita a formulação de que o protagonista é problematizado tarde demais no longa e aponta que suas contradições são mapeadas desde o começo do filme. “No último terço, no entanto, entram em cena os outros personagens que dão um zoom out e fazem o espectador não só mergulhar mais profundamente no contexto dos crimes cometidos pelo Laéssio, mas também a questionar a conexão com esse protagonista que é, de alguma forma, um anti-herói. Depois que a cronologia da vida do Laéssio evolui, faz mais sentido apresentar esse contexto. Porém, mesmo ao longo do filme há ‘vales de empatia’ com a figura do Laéssio, momentos em que suas atitudes e declarações causam repulsa e desconforto misturados a situações em que ele desperta proximidade”.
Uma rápida pesquisa no Google oferta vasto conteúdo sobre as prisões de Laéssio, mas “Cartas para um Ladrão de Livros” tem um trunfo inigualável. Justamente essa bifurcação entre cinema e jornalismo tão bem urdida por dois apaixonados pela comunicação e por grandes histórias.