A história da ex-patinadora de gelo que se viu envolvida em um plano bizarro para tirar sua principal rival dos jogos olímpicos de inverno de 1994 merecia um filme com a altivez e propriedade de “Eu, Tonya”, primeira experiência de Margot Robbie , uma atriz que a cada novo trabalho se revela mais especial e talentosa, como produtora.
Dirigido por Graig Gillespie, cujos créditos contêm os pouco empolgantes “Horas Decisivas” (2016) e “Hora do Espanto” (2011), “Eu, Tonya” tem o mérito de conjugar com incrível energia os elementos dramáticos e cômicos de uma história tão americana – a ideia de vencer por meio do esporte, de perseguir sonhos – quanto universal – somos menos especiais do que nos damos conta.
O filme acompanha a trajetória de Tonya Harding (Margot Robbie) e vai e vem no tempo, fluindo de ponto de vista em ponto de vista, para ofertar um painel ao espectador de um punhado de vidas desperdiçadas. O rigor jornalístico com que reconstitui a trajetória de Tonya e daqueles que a gravitam não se sobrepõe ao olhar aguçado, que recebe o cinismo e deboche muitíssimo bem, escolhido pela realização para pautar uma história tão absurda quanto verídica. Essa estratégia não anula os efeitos dramáticos do filme.
Tonya Harding é uma anti-heroína formal. Esconde-se no vitimismo, mas foi abusada durante toda a sua vida pela mãe, interpretada com ferro e fogo, mas com indissociável humanidade por Allison Jenney , e pelo marido (Sebastian Stan, em grande momento como ator). Sofreu preconceito da federação de patinação por não se adequar aos parâmetros vigentes, mas recusou-se a moldar-se às regras que todas as outras seguiam. Tonya era excepcional. Tinha um talento nato para a patinação, mas também para crises. A mãe diz que a desconfiança, o questionamento em relação a sua capacidade era um combustível para ela no rinque de patinação. Trata-se de um diagnóstico forte, triste e que o espectador se sente tentado a comungar ao fim da projeção.
Essa é uma história de abusos, de chances perdidas e de um amor transformado em dor. Não é usual o cinema se dedicar a personagens que estragam suas segundas chances e justamente por isso “Eu, Tonya” ganha ainda mais força, significado e valor. É um filme que escrutina os intestinos da derrota com senso crítico incômodo. Nesse sentido, tanto a câmera de Gillespie, como o personagem de Bobby Cannavale, um jornalista que cobriu o caso que mobilizou a América na primeira metade dos anos 90, são um dedo em riste para aqueles personagens tragados pela própria ganância.
O desencanto da existência de Tonya, no entanto, também é alvo de afeto. Embora não assuma o ponto de vista de sua protagonista, uma das melhores e mais acertadas diretrizes da realização, o filme destaca o brio de uma mulher que se recusou a beijar a lona, por mais que as circunstâncias de sua vida conspirassem para isso.
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Muitíssimo bem realizado e filmado como uma produção dos anos 80, “Eu, Tonya” apresenta um trabalho de montagem espetacular de Tatiana S. Riegel. É pela edição cheia de coração e timing que o filme alcança dividendos tão satisfatórios enquanto cinema.