Desesperança e impulsos violentos adornam a ótima “O Justiceiro”

Intensa, crua e violenta, série apresenta personagens complexos e cativantes, bem como conflitos que espelham o mundo moderno com espantosa intimidade. É a melhor da parceria entre Marvel e Netflix

Cartaz de O Justiceiro, que chega globalmente à Netflix nesta sexta-feira (17)
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Cartaz de O Justiceiro, que chega globalmente à Netflix nesta sexta-feira (17)

Após um ano com produções que passaram longe da unanimidade ("Punho de Ferro" e "Os Defensores"), a parceria Marvel/Netflix tem em “O Justiceiro” uma redenção legítima. Não se trata apenas de uma série forte, crua, bem feita e violenta. Para além dos adjetivos, os 13 episódios dessa primeira temporada apresentam uma coesão dramática inédita no bem sucedido esquema entre as empresas.

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Criada por Steve Lightfoot (“Hannibal”), a série empresta das HQs alguns personagens que gravitam o universo de Frank Castle . Micro (Ebon- Moss Bachrach, de "Girls") é um ex-agente da NSA que atua como aliado do Justiceiro e gradativamente vai alimentando uma rivalidade com ele e torna-se seu inimigo. Outro é o vilão Retalho, que aqui surge ainda em sua fase bela como o ambicioso Billy Russo (Ben Barnes, de "Westworld").

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A primeira temporada parte imediatamente de onde o arco do Justiceiro terminou na segunda temporada de “Demolidor”. Castle ( Jon Bernthal ) ainda está à caça dos responsáveis pela morte de sua família. O piloto, denominado “3 AM”, é um prato cheio para os fãs do (bom) cinema de ação dos anos 80 e mostra Castle tentando conviver com sua angústia e sua inadequação. Ali já é possível antecipar que muito da força dramática do programa está vinculada ao desempenho de Bernthal, um ator exímio na criação de tipos condoídos e extemporâneos.  

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Micro, personagem que veio das HQs de O Justiceiro e é um dos pontos-chave da série

Castle descobre que a morte de sua família pode estar relacionada ao acobertamento de uma ação ilegal de agentes da CIA no Afeganistão a qual inadvertidamente participou. Essa novidade lhe é apresentada justamente por Micro, que na verdade se chama David Lieberman e precisou “morrer” para proteger sua família já que quando tentou denunciar a tal ação ilegal quase foi morto de verdade.

Micro propõe que ele e Castle trabalhem em conjunto e cada um faz as concessões que mandam o figurino (e os roteiristas) para que tudo dê certo nessa parceria cheia de desconfortos (alguns momentos cômicos) e muita adrenalina. O que mais desestabiliza essa relação unicamente alimentada por um interesse em comum é a proximidade que a “viúva” de Micro passa a ter de Castle. Trata-se de um elemento de tensão muito em costurado pela série.

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Debates complexos

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Curtis e Lewis são dois personagens bem secundários na série cujos conflitos cativam o espectador

Paralelamente, “O Justiceiro” acompanha um grupo de veteranos e suas reminiscências. A própria psicopatia de Frank Castle serve a um debate sobre a necessidade de maior controle da venda de armas nos EUA. A questão é abordada de quando em quando explicitamente no programa, que também reverbera a eficácia e legitimidade de ações clandestinas de agências de inteligência, bem como os tais espólios da guerra. Billy Russo, por exemplo, resolveu lucrar com a guerra. Criou uma empresa paramilitar e enriqueceu com contratos com o governo americano.

Curtis (Jason R. Moore), que perdeu a perna no Afeganistão e é um dos poucos no início da série que sabe que Castle continua vivo, criou um grupo de apoio para veteranos poderem falar sobre seus traumas. Já Lewis Walcott (Daniel Webber), que frequenta o grupo de Curtis, que é financiado por Billy, se sente abandonado pelo sistema e não enxerga reciprocidade no País pelo qual tanto se sacrificou.

A teia de personagens interessantes na série ainda ostenta Dinah Madani (Amber Rose Revah), uma agente da Segurança Nacional que pode ser descrita como fã de teorias conspiratórias e daquele tipo de policial que morde e não larga. É ela quem desconfia de que há uma operação para acobertar crimes da CIA no Afeganistão.

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Karen Page (Deborah Ann Woll) também está de volta e com ela a capilaridade da discussão a respeito da legitimidade das ações de um homem como Frank Castle. Sua conexão com o Justiceiro permanece tão forte e mesmerizante como verificado no segundo ano de “Demolidor”.

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A conexão emocional entre Karen e Frank continua forte e como um dos elementos centrais da narrativa

Cizânia

Violenta e dramaticamente potente, “O Justiceiro” é a série mais singular da parceria entre Marvel e Netflix . Com um personagem acomodado na figura de anti-herói, com sérios problemas de ordem psicológica e emocional e que tanto parece se embevecer de sua dor como se ressentir dela, o programa da Netflix se assevera como um entretenimento viciante e daqueles que justificam o binge watching.

Frank Castle é um grande personagem, mas sua curadoria por Jon Bernthal é digna de nota. A maneira como ator e personagem se conectaram em um nível tão carnal, mas não menos espiritual é alvissareira.  

Cheia de bons momentos e sem medo de adensar os debates que enseja, O Justiceiro ganha o tratamento que merece – à altura das melhores fases de Garth Ennis nas HQs – no audiovisual.