Quando Tomás Lipgot resolveu retratar como as pessoas encarceradas lidavam com a ausência de liberdade em ambientes asfixiantes em “Fortalezas” (2010), o diretor argentino encontrou uma figura curiosa: Moacir. Brasileiro e argentino, como ele mesmo se define, o senhor que na época beirava os 60 anos de idade, havia deixado a sua cidade natal, Santos, no litoral paulista, para perseguir o sonho de ser um cantor na terra de Carlos Gardel, logo após a morte de sua mãe. Entretanto, as coisas não saíram como o esperado e o aspirante a músico acabou preso dentro de uma clínica psiquiátrica na capital portenha com o diagnóstico de esquizofrenia paranoide.
Depois de passar anos recluso em tratamento, uma vivência que é o tema do documentário “Moacir” (2011), o segundo da “Trilogia da Liberdade”, o cantor finalmente desfruta da libertação e, ao lado de Lipgot, vai lançar o seu próprio filme com uma trilha sonora baseada em canções próprias que se perderam diante da turbulência do seu passado. Essa nova trajetória é o que emerge em “ Moacir III ”, filme que faz parte da 41ª Mostra de Cinema Internacional de São Paulo.
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Misturando documentário com ficção e autobiografia, “Moacir III” mostra o protagonista não só como o agente do longa-metragem, mas também como o personagem principal da sua própria criação. Convergindo encenações do cantor com uma espécie de cenas dos bastidores dessa produção fictícia, as primeiras cenas da obra acabam confundindo o telespectador que se questiona sobre o que é espontaneidade e o que não é. Além disso, apesar da ficção presente na obra ser uma criação de Moacir , o documentário de Lipgot se sobressai enquanto gênero cinematográfico do longa-metragem. Se por um lado essa característica nos faz mergulhar de cabeça naquele universo da fantasia – nem tão fantasioso assim – que ali está sendo criado, por outro retrata o protagonista como um homem excêntrico que deve ser constantemente analisado, construindo um distanciamento não só com o público, mas também passando a impressão que o restante do elenco também não possuem conexões com aquele senhor lunático.
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Os primeiros minutos de “Moacir III” chegam até ser angustiantes, trazendo cortes secos que impedem que Moacir conclua suas performances enquanto cantor ou até mesmo os seus círculos de raciocínio, já que suas histórias e argumentações nem sempre são tão lineares. Esse distanciamento faz com que as cenas sejam carregadas e é possível observar o conflito entre a improvisação criativa e inteligência artesanal de Moacir com a bagagem de técnica e conhecimento cinematográfico racional de Lipgot. Em determinados momentos, ainda que tenha ajudado a criar o roteiro do filme ficcional, Moacir se recusa a segui-lo causando um pequeno conflito entre os co-criadores. Liptgot, em outro momento, ainda alerta o cantor: “Não dá para fazer tudo o que você quer. Não dá para mudar de ideia a cada três segundos”.
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Talvez seja exatamente essa espontaneidade de um sonhador que apenas tem o anseio pela realização da obra que dá magia ao filme, que mais tarde começa a fluir. No filme ficcional, Moacir está apaixonado por uma mulher de olhos verdes, interpretada por uma amiga que também dá nome à personagem: Noelia. O episódio, apesar de uma criação imaginária para uma de suas canções, foi inspirado, segundo Moacir, em uma experiência de amor não correspondido que teve no Brasil, com Maria Elena. No filme, o cantor tenta reverter a realidade se casando com a mulher, mas no dia da gravação do casamento, ele foge. A justificativa que emerge é que Noelia, sua amiga que trabalha no Banco Nacional da Argentina, já é casada e não poderia se casar novamente ainda mais com ele, por serem tão diferentes da jovem. Essa mistura entre realidade e ficção mostra o quanto o santista está envolvido com aquele trabalho e que, possivelmente, não seguir o roteiro seja mais interessante e evidencie mais a complexidade humana que tentar manter a história dentro das rédeas.
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No desenrolar dos dois filmes, as partes faltantes do quebra-cabeça vão se encontrando, pequenos fragmentos da vida de Moacir emergem novamente dando sentido àquela teia narrativa e o anseio pela vida – desprendida de correntes – vai tomando conta da tela. A música, em especial o samba, é o outro personagem que está sempre a acompanhar o elenco e Moacir, aonde quer que eles vão. A conclusão do mosaico, por sua vez, não só concretiza uma trilogia sobre a liberdade ou um longa-metragem que une dois grandes filmes, mas também a realização de um sonho libertário da forma mais abrasileirada possível. “Moacir III” se constrói como um filme cheio de altos e baixos, mas essa desigualdade linear não interfere em sua relevância, já que sua proposta é colocar vidas em frente às câmeras e elas são assim mesmo: complexas. Como já diria Moacir, "a vida é uma fantasia e nós temos que saber como aproveitá-la".
41º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
A história de Moacir já rodou o mundo. Os primeiros filmes passaram por diversos festivais de cinema e sua história já foi contada em São Paulo com "Moacir" no Festival Cine de Favela de São Paulo, em 2011. Agora, “Moacir III” terá sua primeira exibição na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo na próxima sexta-feira (27), no Cine Caixa Belas Artes às 21h30. O diretor virá ao Brasil para participar de um debate com o público após essa primeira exibição.
O longa também terá exibições no próximo sábado (28) no Espaço Itaú de Cinema da Frei Caneca às 13h30 e no domingo (29), no Cinearte às 14h, encerrando a sua participação no evento paulista. O filme é uma produção da Miração Filmes e sua classificação indicativa é de 14 anos. Os ingressos custam de R$ 24 e a meia entrada é R$ 12 em todos os dias de exibição do longa.