O ano era 1969: as festas de fim de ano se aproximavam e enquanto as ruas das capitais brasileiras ecoavam as músicas tradicionais natalinas, as celas das prisões reverberavam os gritos oriundos das torturas militares, fruto do regime sombrio que assombrava o país. Foi no dia 22 de dezembro que, por conta desse projeto político, uma revolucionária manifestação cultural chegava ao seu fim, com a prisão e, mais tarde, exílio de Gilberto Gil e Caetano Veloso , dois grandes ícones da tropicália no País.
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“Foram presos músicos que não criticavam diretamente o regime. Para quem trabalhava com música na época foi muito impactante, alguns músicos saíram do Brasil por conta disso”, comenta Frederico Coelho, historiador, professor no departamento de Letras da PUC-RJ e pesquisador. “Esse exilio foi um corte muito radical. Alguns tiveram que ir pra Londres fazer trabalhos com eles [Caetano e Gil] e todo esse cenário acabou resultando no fim da tropicália na época”, completa o historiador. Para ele, este fim não marcou apenas o término de uma era, mas também o começo de um novo momento na cultura brasileira.
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A prisão em si aconteceu algumas semanas depois do Ato Institucional número cinco (AI-5) entrar em vigor no país. O decreto ficou conhecido por endurecer um regime que já não era nada flexível, com o fechamento do Congresso Nacional e Assembleias Legislativas no país. Entre os diversos impactos que a medida proporcionou para a sociedade brasileira, a classe artística, por sua vez, foi diretamente afetada pela falta de liberdade de expressão que a medida proporcionava. O motivo do encarceramento de Gil e Caetano, por sua vez, estava diretamente ligado com os novos acontecimentos no país.
Durante uma apresentação na boate Sucata, na capital carioca, a dupla ao lado dos Mutantes fez um show em que a obra do artista plástico Hélio Oiticica ornava o palco onde os músicos se apresentavam. A imagem era uma representação do bandido conhecido como “Cara de Cavalo”, que havia sido executado pela Scuderie Le Cocq, esquadrão de morte da polícia, deitado no chão ao lado de uma inscrição que dizia: “seja marginal, seja herói”. Uma pessoa do público, entretanto, se sentiu ofendida, denunciou a imagem e o local foi fechado por via judicial. Mais tarde, os cúmplices foram presos em São Paulo, trazidos para o Rio de Janeiro, onde ficaram dois meses em uma prisão militar e depois encaminhados por um avião da FAB à Salvador.
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Em 2016, Caetano relembrou à “TV FACHA” o acontecimento. “Nós não podíamos sair do perímetro urbano de Salvador, tinha que se apresentar todos os dias ao coronel Luís Arthur, que era o chefe da Polícia Federal na Bahia. Isso durou quatro meses”, contou. “O Gil ficou pleiteando uma solução para o nosso caso porque a gente tampouco podia trabalhar, dar entrevistas e ele tinha duas filhas para criar. Eu era casado, mas ainda não tinha filhos”, relembrou afirmando que chegaram a falar ao coronel que não tinham como viver. “Eu fui posto fisicamente dentro do avião com agentes da polícia federal com a frase ‘Não volte. Se voltar entregue-se imediatamente à polícia federal para nos poupar o trabalho de procura-los por dia’. E fui para a Europa assim com o Gil”, finalizou o cantor na entrevista concedida em 2016.
Para Coelho, o momento foi simbólico. “Quando eles foram exilados a geração seguinte a eles começou a se envolver com a abertura que eles provocaram. Se pensarmos que a geração seguinte, com os discos da Gal Costa, Luiz Melodia, Secos e Molhados, a própria carreira solo da Rita Lee, o que os tropicalistas propuseram como pensamento ficou se expandindo e ao longo dos anos 1970 só cresceu”, comenta o historiador.
Reverberações
Após a efervescência da Tropicália, o Brasil enfrentou um momento em que o chamado pós-tropicalismo emergia ao lado de guitarras roqueiras e de uma melancolia expressa na voz e violão. A canção Vapor Barato, na voz de Gal Costa, que havia incorporado as ideias da tropicália tempos antes, indicava já o fim daquele momento musical no país. Em entrevista a um programa do Ministério de Educação da Argentina, a artista relembrou a época. “A minha voz acabou sendo um instrumento que perenizou o tropicalismo porque eu acho que a ditadura poderia ter castrado o tropicalismo, as ideias do tropicalismo”, contou. “Era muito difícil, eu sentia muito angústia, sozinha aqui, cantando com aquele meu jeito de vestir, porque eu andava na rua daquela maneira que me apresentava nos palcos, com o cabelo hippie e as pessoas me agrediam na rua, muitas me xingavam, mandavam eu tomar banho porque achavam que eu tinha piolho. Foi uma época pesada”, relembrou.
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Para Coelho, o fim da tropicália e o endurecimento da ditadura, duas situações correlatas, resultaram nessa nova fase cultural do País. “Era uma situação de ditadura, de censura. Aqueles incomodados tentam apontar alguma forma crítica no seu trabalho, mas nem sempre podemos ouvir as canções como se elas fossem mero reflexo da situação politica. O dado biográfico do compositor se confunde com a época, a melancolia vem com outras coisas também”, comenta. “Então melancolia e resistência são duas palavras que andam juntas nesse momento e a música brasileira que era a principal manifestação cultural da população pra falar respondeu imediatamente e foi imensamente censurada”, completa Coelho. Por mais que as experimentações daquela juventude tenham sofrido uma abrupta interrupção na época, suas ideias ainda reverberam atualmente. “A vitória da tropicália pode ser pensada pela diversidade de estilos que temos hoje”, opina o historiador. Como já anunciava o anti-herói de “V de Vingaça” (2005), “ideias são à prova de balas”.